24 de maio de 2011

Estudo Errado

"Manhê! Tirei um dez na prova
Me dei bem tirei um cem e eu quero ver quem me reprova
Decorei toda lição
Não errei nenhuma questão
Não aprendi nada de bom
Mas tirei dez (boa filhão!)"

O título deste post e os versos que dão início ao texto são da música Estudo Errado, gravada em 1995 por Gabriel o Pensador, e a letra ácida já remetia a problemas graves no sistema de educação brasileiro naquela época. Hoje, quase vinte anos depois, boa parte dos erros de conduta apontados na letra ainda se fazem atuais, e parece que só estamos no meio da ladeira em que a educação em nosso país vem descendo.

Já se discutiu bastante, muita gente já deu sua opinião e muitos questionamentos já foram feitos em relação ao livro Por uma vida melhor da autora Heloísa Ramos que fora aprovado pelo MEC, aquele órgão que, segundo algumas pessoas, é o Ministério da Educação, e eu não poderia deixar de dar as minhas impressões sobre o assunto. O livro, como todo mundo sabe, ou pelo menos deveria saber, em alguns de seus capítulos defende erros de concordância na língua portuguesa como “os livro” e “os peixe”, e ainda considera que não se deve considerar tais flexões linguísticas como erradas e sim inadequadas em certas ocasiões.

Em primeiro lugar é bom deixar claro que no estudo da linguística é cabível perfeitamente considerar outras formas que não as normativas de uso da língua falada. Não adianta ignorar que muitas pessoas falam de forma incorreta e escrevem exatamente como falam e acho válido que haja essa explanação dessas variações como uma forma de estudo. O que me incomodou nessa história, no entanto, é como isso foi passado no capítulo citado. Há um trecho que parece mais tirado de um manual esquerdista de direitos sociais do que de um livro que trata da língua portuguesa: “A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”.

Esse trecho trata a língua portuguesa culta, aquela que deveria ser obrigação de todo brasileiro saber pelo menos o básico, como algo que somente os bem abastados utilizam por fazerem parte de uma classe dominante, e retratar tal pensamento num livro escolar é querer ir um pouco longe demais no aspecto disciplinar.

A generalização nesse caso se faz absurda e posso usar o meu próprio caso como exemplo para provar porquê.

Nunca fiz parte da “classe dominante” e estudei por quase toda a minha vida em escolas públicas, fundamental e ensino médio. Não tive qualquer facilitação no quesito aprendizado apesar de, na época, ter topado com professoras que me fizeram ter gosto pela língua portuguesa, e posso dizer com toda convicção que tudo que aprendi foi graças a meu próprio esforço. Meu português não é perfeito e nem me considero um expert na língua culta, mas no meio em que vivo considero que sei flexionar bem as palavras e verbalizá-las, até porque minha profissão exige que eu saiba me comunicar bem, seja oralmente ou de forma escrita. Eu não fui forçado a aprender o português, aprendi porque considero algo importante na formação de qualquer ser humano que queira viver numa sociedade. Considerar a norma culta da língua como algo que só a classe dominante tem direito a gozo é puramente um argumento pífio diante dos absurdos cometidos no livro, que a meu ver, depõem muito mais contra a arte disciplinar do que a favor.

Não é necessário enaltecer que grande parte da população brasileira trata a língua que se fala na base na pancada, e por conviver com adolescentes e crianças quase que diariamente por dar aula numa escola de informática, eu consigo ver que a utilização da língua portuguesa está cada vez mais banalizada. Muitos dos meus alunos não têm a mínima noção de ortografia, escrevem como falam e às vezes mesmo copiando um texto da apostila conseguem errar. Vêem a palavra certa e digitam errado. Falar de erros gramaticais então é covardia, e isso é uma realidade nos dias atuais. É só frequentar qualquer fórum de discussão na internet para se ter uma ideia do que estou falando.

O que houve de errado entre o período em que frequentei a escola pública e o atual? Os alunos perderam o interesse em aprender? Os professores perderam o interesse em ensinar? Chega a ser assustadora a quantidade de alunos que saem do ensino fundamental sem qualquer noção de interpretação de texto, e o que podemos esperar de um futuro onde os livros ensinam que você deve aprender a forma culta da língua usual em seu país, mas não deve se preocupar em usá-la? Ou que existem várias formas de linguagem, portanto, não podemos considerar errado falar “os livro” e sim inadequado?

Outra coisa que me incomodou foi o fato do texto citar que você pode usar a linguagem “de forma inadequada”, porém deve atentar-se ao fato de que você pode ser vítima de “preconceito linguístico”. Preconceito linguístico?? É claro que no Brasil existe o regionalismo, a criação das gírias em determinados pontos do país torna a cultura linguística muito rica, mas o que se trata aqui é o uso indevido da língua que, no meu ponto de vista, deve ser encarada como uma regra, e a regra, como diria o Arnaldo César Coelho, é clara. Eu não vejo necessidade em se utilizar de meios que venham a driblar algo que é tido como regra e que todo cidadão brasileiro deveria se preocupar, senão qual seria o sentido de se frequentar a escola e ter um professor de português na sala de aula?

A nossa língua é tida como uma das mais difíceis de aprender por um estrangeiro, o que é simples de se comprovar visto que para os próprios brasileiros é algo difícil, mas isso em grande parte vem de sua riqueza estrutural. Dizer que a norma culta continuará a ser utilizada e que o livro não está “desensinando” ninguém não basta se o teor do texto utilizado para afirmar isso continuar tendo um fundo político e ideológico. Conheci muitas pessoas na faculdade, filhos de gente de classe alta, que mal sabiam escrever, e se o faziam causavam vergonha alheia, portanto essa de “classe dominante” é furada. Mais desculpa ainda é afirmar que existem sim pessoas que não tiveram chance de estudar e continuar as tratando como as eternas párias da sociedade, em vez de dar-lhes chances de aprender também. Falar corretamente é um dever de todo cidadão, e tentando proteger essas pessoas menos favorecidas os autores do livro só conseguiram é aumentar mais ainda o abismo que as separa das “classes dominantes” que escrevem e falam corretamente. Se é assim, desculpem leitores, eu faço parte da classe dominante e nem sabia!

Li vários artigos e o próprio capítulo em pauta do livro Por uma vida melhor para ter uma base de argumentação, e juro que tentei entender quem defendeu essa nova forma meio inusitada de ensino. O escritor, linguista e professor da Universidade de Brasília Marcos Bagnos é um desses exemplos de defensores fervorosos que escreveu em seu site a matéria Polêmica ou ignorância? Discussão sobre livro didático só revela ignorância da grande imprensa. Bagnos defende que a imprensa causou alarde por pouca coisa e que a língua portuguesa não possui apenas uma forma dita correta de utilização, e sim várias. Bagnos também alfineta aqueles que consideram a língua portuguesa algo “fossilizado e conservado em formol” e alega que deve haver uma flexibilização maior de seu uso, considerando que sua herança portuguesa (de Portugal mesmo) já não deve mais ser usada como base já que ela sofreu mutações dentro de nossa própria cultura.

Pierre Lucena no post Com vocês, “Por uma Vida Melhor”, o livro mais popular do Brasil no site Acertando as contas, atenta mais para a utilização incorreta de termos ideológicos para defender a ideia de pluralidade linguística, e ainda faz uma crítica à qualidade didática do livro, algo com o qual concordo apenas visualizando a composição gráfica da publicação. Por uma vida melhor apresenta textos corridos de páginas inteiras em tom de redação escolar, e cita exemplos esdrúxulos como os já comentados erros de concordância que agora “nóis pode falar sem medo” (não, isso não tem no livro, é autoria minha).

A autora do livro pode até ter pensado em acertar colocando uma linguagem com o qual o público médio ao qual a publicação se destina se identifique, mas no meu tempo livros eram obras que ensinavam o correto a quem lia, e não deixava em dúvida quando era ou não correto utilizar o que se aprendeu (se é que aprendeu!).

Mais uma vez vejo a educação no Brasil sendo colocada de lado por razões políticas e tomara que eu esteja redondamente enganado e que as próximas gerações saibam fazer bom uso dessas várias e infinitas possibilidades de uso da língua e que essas medidas didáticas não enterrem de vez o que ainda resta do português nosso de cada dia.

E sei que o estudo é uma coisa boa
O problema é que sem motivação a gente enjoa
O sistema bota um monte de abobrinha no programa
Mas pra aprender a ser um ingonorante (...)


Vale a pena também ler a opinião da Camila Silva (minha irmã) sobre o assunto no post Norma Culta do blog Medos Privados em Lugares Públicos. Ela também estudou a vida toda em escola pública e não usa isso como justificativa para "escrevinhar errado".

NAMASTE!

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