24 de abril de 2021

Indicações ao Oscar 2021



O cinema costuma refletir o que acontece na vida real e como não podia deixar de ser, esse ano o Oscar vai premiar ótimas obras de ficção baseadas na realidade, entre elas, três produções que falam de racismo e preconceito étnico: Judas e o Messias Negro, Os 7 de Chicago e Dois Estranhos.

Sigam-me os bons!


Fundado em 1966 pelos estudantes negros de Oakland (Califórnia) Huey Newton e Bobby Seale, o grupo dos Panteras Negras foi criado para combater a violência policial praticada sobretudo contra os afro-americanos, ação que na época, estava se intensificando devido a luta pelos direitos civis. Vendo seus pares recebendo um tratamento cada vez mais agressivo na sociedade à medida que tentavam reivindicar por melhores condições humanitárias, Newton e Seale decidiram igualar suas forças com a Polícia, tornando os Panteras Negras, à princípio, um grupo armado que monitorava as ações truculentas contra negros, coibindo também qualquer manifestação de racismo.   

Nos primeiros anos da fundação dos Black Panther, o grupo não só conseguiu mais adeptos de seus ideais na própria Califórnia, como também acabou ganhando projeção nacional, espalhando células por todo os Estados Unidos. As ações radicais — incluindo as armadas — começaram a se tornar mais sociais e o grupo logo transformou-se num partido, passando a usar sua influência para construir clínicas médicas populares — que atendiam a comunidade pobre, negra e latina —, escolas e até organizando mutirões para entrega de alimentos. Entre suas muitas ideologias, os Panteras Negras pregavam a sociedade autogestionária — onde os negros governariam a si mesmos —, crítica aberta ao sistema capitalista, liberdade para determinar o destino da comunidade, moradia, educação decente e isenção do serviço militar para homens negros.

A expansão das células do partido pelo país claramente passou a incomodar o governo da época — liderado na Casa Branca por J. Edgar Hoover — que via na sua influência um perigo para a sociedade branca predominante. Apoiados por grande parte da população que via na segregação racial o status quo que deveria ser seguido em seu país, os governantes usaram o FBI para implodir a organização dos Panteras Negras, implantando agentes infiltrados em suas células e enfraquecendo o grupo ano após ano. Dois dos casos mais emblemáticos envolvendo membros do partido foram o de Bobby Seale durante o julgamento dos “7 de Chicago” em que o cofundador dos Panteras Negras foi amarrado e amordaçado perante a corte a mando do juiz responsável pelo caso e o do jovem líder do partido em Illinois Fred Hampton que foi assassinado à queima-roupa pela Polícia em sua casa, diante da esposa grávida de oito meses. Ambas as histórias reais estão sendo retratadas em filmes distintos e concorrendo ao Oscar de 2021.


JUDAS E O MESSIAS NEGRO



Dirigido pelo norte-americano Shaka King de 41 anos, Judas e o Messias Negro conta sem grandes filtros a dramática ascensão e queda do líder carismático Fred Hampton, que aos 21 anos veio a se tornar um dos mais importantes e influentes líderes do partido dos Panteras Negras. Interpretado na tela por Daniel Kaluuya (do excelente Corra!), Hampton era um orador talentoso que baseava seus discursos, sempre bastante inflamados frente a sua comunidade, em nomes como o de Malcolm X e do pastor Martin Luther King, ambos assassinados por suas crenças ainda durante a década de 60. Como o “Presidente” do partido em Illinois, Hampton usou de sua persuasão para abraçar outros grupos em pró da sua causa — seguindo a ideologia já comentada dos Panteras — como os porto-riquenhos e os sulistas, que tal qual os negros, eram marginalizados e condenados à extrema pobreza no estado americano.

Judas e o Messias Negro


Em paralelo à ascensão de Hampton junto aos Panteras Negras, o filme acompanha também a vida de William O’Neal (LaKeith Stanfield), um ladrão de carros trapaceiro que acaba sendo cooptado por um agente do FBI chamado Mitchell (vivido pelo comumente conhecido “Matt Damon genérico” Jesse Plemons) para trabalhar infiltrado junto à célula de Hampton. Se vendo sem saída e aceitando trabalhar para o governo em troca de um salvo-conduto, “Wild Bill” acaba entrando para os Panteras Negras, chegando a se tornar o chefe de segurança do partido enquanto espiona secretamente as ações de Hampton.

Judas e o Messias Negro


Apesar de não impressionar tanto em seu início lento ou ousar com tomadas de câmaras mirabolantes — e nesse caso desnecessárias — Judas e o Messias Negro compõe muito bem seus personagens principais, tornando bastante imersivas suas jornadas pessoais. É impossível não reagir positivamente às sequências em que Hampton discursa diante de uma plateia exultante ou que ele simplesmente convence novos adeptos à sua causa — entre eles a célula conhecida como “The Crowns”, que eram rivais aos Panteras em essência, mas que partilhavam de vários de seus ideais — e exatamente por isso, o filme se coloca como um elemento importantíssimo para entendermos melhor essa época tão conturbada da história americana e cujas consequências se estendem até os dias atuais. De certo modo, a luta de Hampton contra o racismo perdura até hoje, travada agora por outras pessoas.

É importante salientar que em vários momentos do filme nos é mostrado em detalhes que, apesar das ações sociais em pró da comunidade carente da região onde a sede do partido está instalada, os Panteras Negras consideram o uso da força contra a Polícia para se fazer entender, mas que isso em nenhum momento desabona o motivo pela qual eles se organizaram. O endosso pela causa antirracista ganha ainda mais intensidade conforme mergulhamos no plano sujo do agente Mitchell e seus superiores para destruir Fred Hampton — com o óbvio aval do Presidente J. Edgar Hoover, em tela vivido por Martin Sheen — usando a figura de O’Neal, e simplesmente não tem como não nos colocarmos do lado dos oprimidos. Nesse sentido, Judas e o Messias Negro presta um excelente serviço de conscientização às causas raciais e nos faz ter empatia não só ao que Fred Hampton representava na vida real, como também a todas as pessoas que sofreram injúrias e acabaram pagando com suas próprias vidas acima de tudo pela cor de sua pele.

O assassinato brutal de Fred Hampton estimulou diversos protestos na comunidade negra dos Estados Unidos ao final da década de 60 e somente muitos anos depois é que foi pago uma indenização à sua família e a dos outros membros do partido mortos durante a ação desproporcional da Polícia, que disparou quase 100 tiros na invasão à casa, contra um disparado em autodefesa. Apesar disso, não houve qualquer declaração de desculpas ou de arrependimento por parte das autoridades após a derrota nos tribunais. 

É impossível não comparar Judas e o Messias Negro com outra grande porrada visual que é Infiltrados na Klan (comentado aqui) de Spike Lee, o vencedor de Melhor Roteiro Adaptado do Oscar 2020, já que ambos falam de assuntos semelhantes — racismo, infiltração de agentes em grupos rivais... —, mas apesar de ser um material mais cru de uma realidade sem floreios, o filme de Shaka King carece de ritmo em certos momentos comparado ao de Lee, o que felizmente é compensado pela brilhante atuação do protagonista Daniel Kaluuya, que desponta como um dos mais importantes atores negros de Hollywood. Toda a motivação de Hampton está entranhada na interpretação do ator e ele chega ao Oscar 2021 como um forte candidato ao prêmio de Melhor Ator Coadjuvante, ao lado do parceiro em tela LaKeith Stanfield.

Além de Melhor Ator Coadjuvante, a produção disputa também Melhor Filme, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia. Se destacando como o primeiro filme a ser produzido inteiramente por negros (entre eles Ryan Coogler, diretor de Creed e Pantera Negra da Marvel), Judas e o Messias Negro não concorreu ao prêmio máximo do Globo de Ouro desse ano, mas Daniel Kaluuya foi premiado como Melhor Ator Coadjuvante na categoria.

Judas e o Messias Negro não está disponível em nenhuma plataforma de streaming no Brasil e atualmente pode ser visto apenas em alguns cinemas do país, com todas as restrições atuais por conta da pandemia de Covid-19.

NOTA: 9


OS 7 DE CHICAGO



Tanto Judas e o Messias Negro quanto Os 7 de Chicago se passam praticamente na mesma época dos anos 60 e chegam mesmo a “compartilhar” alguns personagens, visto que Bobby Seale — que é apenas mencionado em Judas — faz parte inicialmente do julgamento dos "7 de Chicago" e é orientado, na ausência de seu advogado na corte, pelo próprio Fred Hampton, nesse filme, interpretado pelo ator Kelvin Harrison Jr.. 

Os 7 de Chicago


A participação de Seale (vivido por Yahya Abdul-Mateen II, o Arraia Negra de Aquaman) na produção dirigida por Aaron Sorkin é bem mais intensa, visto que é protagonizada por ele a cena absurda — e revoltante — em que o juiz tendencioso Julius Hoffman (Frank Langella), na tentativa de calá-lo por sua insistência em querer se representar sozinho diante do júri — doente, o advogado de Seale está ausente do julgamento —, manda que os seguranças batam, amarrem e amordacem o homem diante de todos, numa tentativa truculenta de “manter a ordem” no tribunal. 

Assim como os outros réus do famoso caso, Seale é acusado de causar tumultos em protestos contra a obrigatoriedade do alistamento de jovens para combater na Guerra do Vietnã e apesar de não estar necessariamente aliado aos demais, acaba sendo julgado em paralelo, até ser absolvido de todas as acusações posteriormente. É notório no filme o desprezo que o juiz Hoffman sente pela figura de Seale e é bem claro o tratamento diferenciado que ele, por ser preto, recebe do magistrado, incluindo aí a ordem de violência física.

Os 7 de Chicago


De maneira bem didática em forma de flashbacks e da narração sucinta do personagem Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen, de Borat) em um show de stand-up, Sorkin mostra toda a trajetória de cada um dos 7 membros até sua chegada ao fatídico dia do confronto com a Polícia, durante a Convenção Nacional Democrata de 1968 em Chicago, Illinois. Acusados de conspiração e incitação à revolta contra a Guerra do Vietnã — em que os EUA estavam presentes desde 1964 —, Tom Hayden (Eddie Redmayne), Abbie Hoffman (o já citado Sacha Baron Cohen), Rennie Davis (Alex Sharp), Jerry Rubin (Jeremy Strong), David Dellinger (John Carroll Lynch), Lee Weiner (Noah Robbins) e John Froines (Daniel Flaherty) passam por um extenuante julgamento que demora seis meses e em que a promotoria tenta de várias maneiras comprovar a culpa deles em toda a ação que levou ao uso excessivo de força por parte da Polícia. Representados pelo advogado William Kunstler (Mark Rylance) e procurando comprovar sua inocência enquanto dezenas de testemunhas são ouvidas, os 7 são interpelados pelo promotor Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt), que apesar de toda a pressão para que faça-se cumprir a lei, no filme, não acredita 100% na culpa dos rapazes.

Os 7 de Chicago


O longa tem uma montagem dinâmica entre as cenas e a história é conduzida sem grande barriga no miolo, fazendo com que até mesmo o espectador mais leigo em direito penal consiga acompanhar do preâmbulo da narrativa até seu desfecho, em tela, apoteótico. Embora conte com vários floreios que servem para uma condução mais adequada da trama — algo bastante comum em adaptações de histórias reais para o cinema — Os 7 de Chicago é até bastante fiel ao que aconteceu de fato em 1968, incluindo as piadas da dupla Abbie e Jerry com o juiz Hoffman e a leitura dos nomes dos mais de 5 mil soldados americanos mortos no Vietnã durante o julgamento. Filmes que narram julgamentos sempre me atraíram desde a adolescência — e Hollywood sabe bem transformar qualquer caso em espetáculo! —, mas costumeiramente eles são chatos e arrastados, algo que não acontece aqui.

Na festa do Oscar, além de Melhor Filme, The Trial of the Chicago 7 concorre a Melhor Ator Coadjuvante (com Sacha Baron Cohen, que realmente está incrível como o provocador Abbie Hoffman), Roteiro Original, Fotografia, Montagem e Canção Original (“Hear My Voice”, interpretada pela cantora Celeste).

Assim como outros 17 títulos que disputam o Oscar esse ano, Os 7 de Chicago está disponível na Netflix e pode ser assistido até a noite da premiação.

NOTA: 8,5


DOIS ESTRANHOS



Dirigido por Martin Desmond Roe e escrito por Travon Free, Dois Estranhos (no original “Two Distant Strangers”) é um daqueles curtas que possivelmente nunca iríamos dar uma chance de assistir se por um acaso não fosse indicado ao Oscar, mas que é uma bofetada na cara de quem acha que cinema tem que ser obrigatoriamente apenas diversão. Confesso que não sou muito de assistir curtas-metragens e que ignorava completamente a existência de Dois Estranhos até muito recentemente, mas agradeço muito a facilitação que hoje os serviços de streaming como a Netflix trazem ao disponibilizar esse tipo de material, os tornando mais acessíveis para um público como eu.

Produzido na onda de choque que foi o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e tendo como enfoque principal o racismo, Dois Estranhos narra em 32 minutos — menos que muito episódio de série — a desventura do personagem Carter James (Joey Bada$$) que após acordar no apartamento de uma namorada casual, decide seguir para sua casa tranquilamente, tendo a infelicidade de topar com o policial linha-dura vivido pelo ator Andrew Howard no caminho. 

Joey Bada$$ e Andrew Howard de Dois Estranhos


Por puro e simples preconceito racial, o homem aborda Carter de maneira intimidatória, usando de argumento o cigarro que ele está fumando, além do maço de dinheiro que ele guarda na mochila, fruto de seu trabalho como designer gráfico. Sem dar qualquer chance do rapaz se explicar, o policial entra em conflito físico com Carter o derrubando no chão e o asfixiando, de maneira muito semelhante ao que Derek Chauvin fez com George Floyd em maio de 2020 em Minneapolis. A sensação ao assistirmos a cena fictícia é tão assustadora quanto a que tivemos com o vídeo real — incluindo a mesma frase de súplica "I can't breathe!" — e após a “morte” de Carter, o personagem entra num looping temporal — como no Dia da Marmota — que o leva sempre ao mesmo desfecho violento: com ele sendo vítima fatal do policial branco.

Apesar de ser um filme curto com poucos personagens, “Two Distant Strangers” é de uma carga emocional muito grande que nos faz enxergar pela ótica de uma pessoa negra os preconceitos e infortúnios diários com que eles convivem, sendo sempre vítimas de desconfiança, de olhares tortos e da completa desumanização por parte de quem não é dito “de cor”. No curta, mesmo tentando abordagens mais brandas e procurando evitar o confronto a cada nova chance de vida, Carter acaba percebendo que o policial não está a fim de ser empático com a sua figura — mesmo ele provando se tratar de uma pessoa boa cujo cão o está esperando para ser alimentado em casa — e mesmo quando tudo aponta para um desfecho colorido e reconfortador, a dura realidade volta a bater em nossa cara, mostrando que nem todo mundo consegue ter um final feliz numa sociedade tão racista e preconceituosa.

De uns tempos pra cá, eu tenho tentado estudar sobre direitos civis e entender mais sobre o racismo estrutural que permeia o nosso meio — e casos como o João Alberto Silveira Freitas do Carrefour nos mostram que a realidade está bem mais próxima de nós do que imaginamos —, mas é cada dia mais complicado tentar entender o que leva o ser humano em pleno século XXI ainda querer que haja segregação racial ou a querer que as pessoas negras aceitem que o seu “não gostar de negros” é a sua opinião e não estupidez pura e simples. Enquanto os corpos de novos George Floyd e outros João Alberto vão sendo empilhados, a sociedade continua negando a existência de um preconceito racial, inflamando cada dia mais um discurso vazio e rasteiro para justificar a sua ignorância.

Mais do que nunca, é preciso que seja dito… Vidas Negras Importam!

Dois Estranhos disputa o Oscar de Melhor Curta-Metragem em live-action e tem tudo para fazer história na premiação em tempos tão necessários de obras diretas e concisas como essa. Fica nossa torcida.

NOTA: 10 


P.S. – O Pantera Negra da Marvel chegou a ser chamado de “Black Leopard” em 1972 para que houvesse uma dissociação do Rei de Wakanda com o partido político homônimo do personagem e tanto Jack Kirby quanto Stan Lee, os criadores dele, sempre negaram a influência dos Panteras Negras para o desenvolvimento de T’Challa. Em tempos, a primeira menção a um grupo denominado “Panteras Negras” surgiu nos EUA em 1965, mas o grupo criado por Huey Newton e Bobby Seale só surgiu um ano depois, na mesma época em que o Pantera Negra da Marvel fez sua estreia nas HQs do Quarteto Fantástico.

Pantera Negra socando nazista

 

P.S. 2 - A cena em que o cachorro do personagem Carter James de Dois Estranhos é focalizado esperando ele enquanto seu dono é baleado pelo policial filho da puta deu um gatilho foda! Ainda estou de luto pelo meu amigo Peter e cada referência canina na ficção me causa um turbilhão de lágrimas!


Fontes:

Para entender os Panteras Negras

Quem foi o Messias Negro

Quem foram os The Crowns

O Pantera Negra da Marvel e seu contexto político

O Caso João Alberto Silveira Freitas

O Caso George Floyd


NAMASTE!

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