Estava velho demais para acreditar em Papai Noel, mas naquela madrugada eu roubei uma garrafa de sidra da geladeira, destampei e comecei a beber sozinho no quintal de casa, à espera do tal velho batuta. Ainda dava para ouvir as pessoas do lado de dentro da casa comemorando o Natal. Caía uma garoa fina sobre minha cabeça. O gosto do champanhe de pobre agora se misturava à água que caía da calha velha. Pouco me importava. Nunca tinha sido de beber, não sentia vontade de encher a cara e pouco me atraía por álcool. Gostava de manter minha sanidade... a pouca que tinha me restado naquele ano desgraçado.
Veio como um brilho intenso, amarelo, ofuscante. Ouvi meu
cachorro ganindo. Ele levantou-se com dificuldade de sua casinha, andou para
perto de mim bamboleando os quadris envelhecidos, sacudiu o pelo branco
encardido e ensaiou um latido. Eu tinha acabado de dar um gole na bebida amarga.
Olhei para o fundo do quintal. Uma silhueta corpulenta surgiu das sombras,
arrastando alguma coisa grande e pesada atrás de si. O cão mais uma vez fez
menção de latir, mas ficou olhando com curiosidade a figura que começava a se
aproximar da luz de uma lâmpada mal rosqueada num bocal torto sob onde estávamos os
dois.
— Foi aqui que pediram uma... — A voz rouca calou-se por um
segundo. O homem maciço ajeitou o par de óculos sobre o nariz adunco e leu em
um papel amassado: — máquina do tempo?
Me sobressaltei em meu assento improvisado, o degrau onde
havia deixado meu corpo cair assim que cheguei ao quintal. Meu cachorro começou
a abanar o rabo para o velhinho simpático, e pela primeira vez, percebi que
estava na presença do próprio Papai Noel. Havia uma caixa enorme atrás dele,
algo em torno de uns dois metros, dois metros e vinte de altura. Ele a tinha
arrastado até a luz sem muita dificuldade e só então comecei a reparar em suas vestes.
Nada de casaco vermelho, gorro com pompom ou botas para a neve. Parecia mais um
daqueles velhos bêbados que encontrávamos aos montes pelas esquinas após a ceia
de Natal. Camisa de botão, calça jeans velha e chinelo.
— Tem certeza que é para mim? — Perguntei a ele, deixando a
garrafa de lado. Meu cachorro apresentava intenção de descer o degrau, mas é
como se ele estivesse avaliando antes se valia o esforço. Parecia que não valia.
— Não sei se fui um bom menino esse ano!
Eu ironizei, com um sorriso no rosto. O homem pareceu me
avaliar, como se estivesse se certificando de que não errara o endereço. Aquilo
seria bem frustrante!
— Temo que seja para você mesmo o presente. Não posso dizer
que foi o ano em que esteve mais bem-comportado, mas medi seu merecimento pela
média dessa espelunca de país onde você vive. Que bela merda, hein? E que gente
mais mal-educada!
Não era o tipo de linguajar que eu esperava de um Papai Noel…
mas aquela também não era a aparência que eu imaginava dele!
— Nem lembrava que tinha pedido um presente esse ano!
Ele me olhou meio que infeliz e respondeu de prontidão:
— Pois está aqui! Faça bom uso. Deu um trabalho do cão
arrastar essa bosta até seu quintal!
O velho acenou em seguida, ajeitando a calça por cima da
pança volumosa. Caminhou de volta até a sombra de onde tinha surgido e
desapareceu, desejando um “feliz Natal”.
Eu nunca tinha acreditado em Papai Noel e jamais havia
comemorado aquela data tão carregada de tristeza antes daquele ano. O desespero
tinha feito eu me apegar a crenças que antes eu considerava insólitas e era
curioso que bem daquela vez algum pedido meu tinha sido atendido. Queria estar
bem longe dali, num lugar onde não pudesse ser encontrado por mais ninguém e
então pedi com toda fé a alguma entidade cósmica que ela permitisse que eu
voltasse no tempo para corrigir meus erros. Eu estava cansado demais para
sequer desejar continuar dali e então comecei a olhar para trás, para tudo que
eu tinha, tudo que eu era e que estava cada vez mais morto dentro de mim.
A máquina do tempo era velha e parecia caindo aos pedaços. Caminhei até a cabine, abri a porta e me enfiei dentro dela. O espaço era apertado, dava para uma pessoa e nada mais. Dei uma última olhada para meu cachorro e agradeci que ele não tivera coragem de descer o degrau para me seguir. Já não tinha mais o mesmo vigor de antes. Estávamos em situação semelhante. Os controles do aparelho não pareciam complexos. Acionei um botão vermelho. Senti a cabine começar a tremular. Pensei numa data em que gostaria de voltar. “Que tal voltar exatos 20 anos... o começo da minha vida adulta? Eu poderia me aconselhar, dizer todos os caminhos que deveria tomar para não acabar como eu estava agora... poderia me dar dicas do que fazer para me tornar alguém melhor, alguém mais importante, alguém mais inteligente… eu poderia voltar para minha infância... revisitar meus brinquedos velhos, a mesa de futebol de botão, os jogos de tabuleiro... eu poderia...”
A máquina brilhou e num estalo eu estava em outra época, no
mesmo quintal. Saí cambaleante da cabine e olhei ao redor. As paredes tinham
outra cor, a casa estava menos deteriorada, o cheiro das plantas de minha mãe
ainda podia ser sentido dali. Dei a volta e alcancei a porta de entrada. Nada
era como eu me lembrava. A vizinhança era diferente. A rua era mais calma,
havia menos movimento do lado de fora. Meu cachorro ainda não existia. Entrei
em casa e tratei de dar uma olhada no calendário... em meu momento de
indecisão, a máquina do tempo tinha feito meu trabalho por mim. Eu tinha
retornado mais de 20 anos. O meu eu daquele período tinha 14 e o encontrei
no quarto lendo um gibi do Homem Aranha. O nosso preferido.
Foi estranho me observar ali da porta, mas tratei de olhar
tudo ao redor com mais calma antes de chamar minha atenção. Havia uma cama de
solteiro no canto esquerdo da parede, um guarda-roupa velho ao fundo e uma
cômoda meio capenga à direita. Entrava uma luz forte do meio-dia pela janela.
Me vi debruçado sobre a cama atento às páginas amareladas do gibi. Me lembrava
bem. Tinha conseguido num sebo após a aula. Minha mãe tinha dado com muito custo
alguns trocados para que eu o comprasse e passei um bom tempo na banca de rua
escolhendo o que queria levar. O velho que tomava conta do sebo era do tipo
ranzinza, que reclamava se alguém ficava muito tempo folheando as revistas
usadas, mas eu sempre dava um jeito de olhar o que tinha dentro. Aquele gibi
devia ter uns cinco ou seis anos. Devia ter passado na mão de uns dois ou três
donos antes de mim. Era meu preferido.
— Nós já lemos esse mais de dez vezes!
Eu não sabia como chamar minha própria atenção e então dei
duas batidas na porta antes de fazer minha voz soar. O meu eu jovem me olhou de
olhos arregalados e engoliu em seco. Tinha cabelos crespos bem vastos, caindo
por cima das orelhas. O nariz era grande, tinha braços finos, pernas compridas
e esqueléticas. Parecia um espantalho. “Agora
me lembro porque eu era tão ridicularizado na escola”.
— Quem é você?
O garoto magrelo me perguntou botando o gibi de lado, e de
repente, me lembrei que não tinha ensaiado aquele diálogo por tempo suficiente
em minha cabeça. Indiquei a cama, já adentrando o quarto e era como se o
moleque fosse cair desmaiado a qualquer momento. “Alguém faça um sanduíche para esse garoto! ”.
Eu me sentei a seu lado e percebi que não havia forma mais
simples de dizer aquilo. Fui direto:
— Eu sou o seu eu de 2020.
Era fácil perceber algumas semelhanças entre nós dois e
notei que o meu eu mais magro ficou a esquadrinhar meu rosto enquanto eu
apanhava o gibi sobre a cama e dava uma folheada. Marvel Especial 2. Os maiores
combates entre o Homem Aranha e seu arqui-inimigo Duende Verde. A última história
do compilado era “A noite em que Gwen Stacy Morreu”... minha preferida.
— Como... como você chegou aqui?
A voz era mais aguda, mais limpa. Naquela época eu alcançava
notas maiores, tinha uma afinação diferenciada. Adorava imitar as vozes de
desenhos animados, de atores famosos e de cantores. Sabia que não tinha mais
aquela capacidade hoje em dia.
— Tenho certeza que você vai acreditar se eu disser que foi
de maneira mágica.
Não houve qualquer questionamento. Eu era uma pessoa bem
mais razoável naquele tempo.
Embora eu não tivesse planejado muito bem o que iria dizer
ao meu eu de 14 anos, algo me induziu a conversar comigo mesmo e dizer bem
francamente tudo que tinha nos acontecido nos vinte e tantos anos que nos
separavam. Depois de aceitar o fato de que o sujeito calvo, barbudo e meio
pançudo à sua frente era sua versão futura, o garoto começou a me fazer
perguntas de maneira curiosa.
— Como é o futuro? Existem mesmo carros voadores? A ciência
já inventou a cura para todas as doenças?
Eu dei uma risada sarcástica. Olhei bem no fundo daqueles
olhos ainda cheios de esperança — eu nem sabia mais como era ser tão inocente —
e o trouxe para a minha realidade:
— As pessoas ainda nem aprenderam a andar segurando
guarda-chuva sem esbarrar umas nas outras, imagina dirigir carros voadores! —
Ele me olhou incrédulo — E nesse exato momento o mundo em 2020 está tentando se
recuperar de uma pandemia que em muitos países ainda está matando muita gente.
Havia agora terror em seu rosto.
— Uma pandemia? Então é muito grave!
— Sim. O vírus é chamado de Covid-19, ataca os pulmões,
causa dificuldades respiratórias... seríssimo. Só no Brasil já matou mais de
190 mil pessoas.
— Mas ainda não descobriram uma cura? — Ele se ajeitou na
cama sentado a meu lado. Estava bastante interessado.
— Ah, sim. Alguns laboratórios já desenvolveram vacinas que
tem sido aplicadas em países da Europa e também nos Estados Unidos. Muita gente
já tem sido imunizada.
— Mas e no Brasil?
Eu nem sabia como começar a explicar que por conta de uma
burocracia burra e por uma falta de planejamento do Ministério da Saúde o
Brasil ainda não tinha criado uma estratégia de vacinação. Também era difícil explicar
que havia uma vacina sendo desenvolvida em parceria com um laboratório chinês
no país, mas que ainda não tinha eficácia comprovada. E como eu ia dizer ao
garoto que o próprio Presidente da República estava jogando futebol e
minimizando a pandemia — mais de 10 meses depois — enquanto o governo não tinha
feito nenhum pedido de vacinas a nenhum dos laboratórios que as estavam
disponibilizando em outros lugares do mundo?
— Mas como vão ficar as pessoas? Por que o Presidente não
toma uma atitude?
— As pessoas continuam morrendo nos hospitais e muitas das
que não estão doentes ainda, continuam se aglomerando em festas de fim de ano e
comemorações com os amigos. O Presidente é o maior exemplo da falta de noção
com a periculosidade da doença. Ele é seguido por grande parte dos brasileiros e para essas pessoas, tudo que ele fala é lei. O homem é um negacionista, chamou o Covid-19 de "gripezinha", diz que ninguém deve ser obrigado a se vacinar e não tem pressa nenhuma para que a população comece a ser vacinada.
— Mas isso é terrível! — Alarmou-se meu eu de 14 anos.
— Nesse momento, em 2020, tem jogador de futebol famoso
bancando festinha para mais de 500 pessoas no litoral, ex-BBB se aglomerando
com outros famosos em festas clandestinas, vizinhos comemorando Natal e ano
novo amontoados e até parentes indo para a praia e postando vários stories como se nada de grave estivesse acontecendo.
Havia confusão no olhar do garoto.
— O que é um “ex-BBB”? E o que significa “postar stories”?
— Não se preocupe. Não é nada muito importante.
Eu tinha percebido que aquelas notícias sobre o futuro
haviam tirado um pouco do brilho juvenil do rosto do garoto. De repente, eu
estava me sentindo meio sádico em apagar de forma tão brusca o sorriso de
alguém que ainda tinha uma vida inteira pela frente, mas precisava ser assim.
Era necessário um choque de realidade. Ele precisava entender que as coisas
tinham que ser diferentes e que somente com uma nova atitude eu teria, quem
sabe, a chance de me tornar um adulto feliz, um adulto realizado. Aquele
magrelo era a minha melhor chance.
— Mas e nós? Como estamos em 2020, em meio a pandemias,
ex-BBBs e stories?
— Nada bem. — Eu dei uma suspirada. Ajeitei minha coluna
dolorida e continuei — Nós estamos desempregados nesse
momento, nossa última namorada nos deixou e não há qualquer perspectiva de
melhora para os próximos meses. Decididamente eu não vejo solução para nossos
problemas. Na verdade, eu tenho pensado muito em acabar com tudo de maneira brusca ultimamente... para tentar evitar isso é que estou aqui.
Ele ficou triste. Deu uma olhada rápida para a capa da
revistinha em cima da cama. Seus olhos pararam na imagem de Gwen Stacy
estatelada no chão enquanto seu namorado Homem Aranha se desespera em pé diante
de seu corpo.
— Me fale um pouco sobre essa namorada... o que aconteceu?
Fiz uma pausa. Busquei uma maneira simples de começar a contar.
— Ficamos dois anos juntos. Ela era uma ótima companhia.
Inteligente, divertida. Meio mimada também… mas eu gostava disso. Me deu a
maior força quando eu mais precisei. Ficou sempre ao meu lado. Começamos a
namorar porque um precisava do outro naquele momento. Ela também estava
passando por momentos difíceis em sua vida e eu meio que servi de bote
salva-vidas em meio a uma tempestade. Depois de algum tempo, toda minha baixa
autoestima, minhas inseguranças e minhas paranoias começaram a cobrar o preço e
aquilo me afastou dela. Ela jogou na minha cara que eu a estava
prendendo, que por minha causa ela não saía mais com os amigos e que não fazia mais
as coisas que gostava. Disse também que se sentia na sombra da minha
ex-namorada e que eu nunca a tinha superado verdadeiramente.
— E isso é verdade?
— Não totalmente. No começo tinha sido apenas para que eu
conseguisse esquecer a ex, mas depois se tornou algo real. Algo forte. Eu
gostava verdadeiramente dela, mas eu tinha dificuldades para demonstrar isso.
Sempre foi difícil deixar uma pessoa entrar em minha vida, ainda incomodava só
de pensar na dor que era perder alguém, vê-la se afastar, ir embora sem olhar
para trás... por isso, eu tinha medo em dizer que a amava e que a queria
em minha vida para sempre. Eu não queria perdê-la também...
— Mas não adiantou muito, né?
— Não. No começo do ano ela resolveu terminar tudo. Disse
que “nosso ciclo tinha se encerrado” e paramos de nos falar.
— Nunca mais ouviu falar dela?
— Nos falamos algum tempo depois. Ela até me contou que
estava grávida...
— Nós temos um filho? — A expressão de felicidade no rosto
do garoto foi breve, mas intensa. Outra vez tive que quebrar sua expectativa.
— Não, não temos. — Havia tristeza agora em minha voz.
Parecia que um nó tinha apertado minha garganta — Ela me contou algumas semanas
depois que tirou o bebê. Passamos três meses juntos sem que ela tivesse coragem
de me contar sobre a gravidez e decidiu sozinha que não queria ter a criança.
Nós nos encontramos depois e ela me contou toda a história. Disse que um filho
àquela altura da vida só a iria atrasar e que ela não tinha qualquer plano de
cuidar de uma criança. Eu não tinha como não concordar com ela e embora eu não pudesse
mais fazer nada, fiquei algumas semanas depois daquilo apático, sem saber o que
pensar. Eu sabia que para ela um bebê não seria algo positivo naquele momento, mas me doeu muito saber que eu tinha perdido um filho — um menino — que eu nem sabia que tinha existido. De alguma forma, aquilo acabou alimentando a minha já costumeira
depressão. Eu estava cada dia mais perdido.
O garoto ao meu lado não sabia bem o que dizer. Naquela
época eu era extremamente tímido e retraído, era péssimo em comunicação. Eu morria de vergonha da minha
aparência, era inseguro com meu corpo e não me achava bom suficiente em nada,
embora tirasse boas notas na escola. O trauma de ser ridicularizado nas aulas
de educação física, de ser sempre criticado e xingado de “magrelo” haviam
criado uma aura de insuficiência ao meu redor, algo que me acompanhou por
muitos anos... tentei colocar muito daquilo para fora nas sessões de terapia em
2018, mas havia algo dentro de mim que não podia ser compartilhado com mais
ninguém, algo que nem mesmo eu conseguia exprimir e que me fez parar com as
visitas ao consultório. Comecei a achar que estava fazendo a psicóloga perder
seu tempo comigo e que aquilo que estava quebrado não tinha mais conserto.
— E como ela ficou depois do aborto?
— Não sei. Ela teve alguns problemas de saúde depois, mas
ficou bem em seguida. Parei de acompanhá-la, mas soube que arrumou outras pessoas...
deve estar fazendo tudo que dizia que não conseguia fazer ao meu lado, sabe?
Sendo feliz... não a culpo.
— Então nós estamos sozinhos...?
— Sim. Aliás... como sempre.
Mais uma vez a nuvem de tristeza sobre seus olhos.
— Você e eu não vamos ser muito felizes na parte
sentimental, garoto. Acostume-se com isso. Você vai ter a sua primeira namorada
aos 17 anos, mas não vai ser nada que dure mais do que algumas semanas... e
nada além de beijos. Você vai se iludir com algumas colegas de curso técnico,
vai achar que está apaixonado, mas saiba que tudo não vai passar de devaneios
seus. A mesma coisa vai acontecer na faculdade, mas aí vai aparecer uma garota
que vai arrebatar você. Que vai te fazer sentir coisas que você nunca sentiu
antes na vida e que vai te apresentar a um mundo cheio de amor, carinho e prazer.
Muito prazer!
Ele pareceu se animar. O brilho nos olhos voltou.
— Vai durar uns dois anos… mas aí ela vai quebrar seu
coração e vai te deixar sozinho outra vez. Vai parecer que seu mundo acabou — e
por um tempo ele vai mesmo! — vai parecer que nada mais importa, mas um dia
você vai se recuperar. Nesse período, o grande amor da sua vida vai ter se
casado com outro cara e ter filhos com ele, mas você vai encontrar consolo também nos
braços de outras garotas. A maioria, meras companhias para tempos tristes.
Outras que vão deixar marcas até hoje impossíveis de apagar… e no final, vamos
acabar sozinhos. Como sempre foi.
Comecei a ouvir um som do lado de fora da casa e percebi que
minha viagem no tempo estava prestes a acabar. A máquina do tempo estava
pronta para voltar para a nossa época.
— Mas e a nossa família? E nossos amigos? Tem tanta coisa
que eu ainda quero saber! — Disse o garoto.
— Alguns dos nossos tios partiram dessa existência, mas
nossa família está bem. Estão todos se cuidando direitinho em meio a pandemia e
ninguém tem cometido excessos. Nossa mãe, nossos irmãos, nossos sobrinhos…
— E nosso pai?
— Esse sumiu no mundo há muito tempo e não temos notícias.
Mas quem se importa?
O garoto pareceu espantado.
— E nossos amigos?
— Melhor impossível. A maioria constituiu família, estão bem
empregados e felizes. Entre eles tem gerente, engenheiro, professor, tecnólogo... alguns
eu não sei direito porque perdemos contato. O isolamento social a que eu e você
vamos nos prestar é bem mais profundo, vai além daquele que a pandemia exigiu.
Como eu disse… nós estamos sozinhos.
— Mas e a gente? Conseguimos nos formar? Realizamos nosso
sonho de ser desenhista pelo menos?
O som do lado de fora agora era mais alto. Dava para sentir
as paredes vibrando. A máquina do tempo queria partir.
— Nos formamos sim, mas jamais realizamos o sonho de ser
desenhista. Esse sonho ficou para trás junto com um monte de revistas em
quadrinhos que acumulamos com o tempo e que agora pegam poeira dentro de um baú
velho. Mas não fique triste — fiz uma pausa o encarando — por um tempo vamos
trabalhar com algo muito parecido com isso e vai ser um período muito bom da
sua vida. Breve, mas bastante intenso.
Eu me levantei da cama. Já era hora de partir. Sentia que
não tinha contado nada que valesse realmente a pena para o garoto, mas esperava
que aquele bate-papo com meu eu do passado tivesse feito sentido, que aquele
garoto pudesse mudar as coisas, que fizesse o rumo da minha vida lamentável se
alterar.
— Preciso ir agora. Tem mais alguma coisa que queira saber
do futuro?
Ele encarou mais uma vez o gibi sobre a cama e respondeu
rapidamente:
— Nós não gostamos mais de quadrinhos? Tudo que as histórias
do Homem Aranha nos ensinou ficou no passado?
Abri um sorriso.
— Nós ainda adoramos quadrinhos… mas se prepare que com o
passar dos anos eles vão ficar cada dia mais caros! Tente não gastar tanto com
eles. — Dei uma risada — A parte boa é que agora os personagens de gibi são
populares e vão existir muitos filmes e séries sobre eles para a gente
assistir.
— É sério? Vai ter um filme do Homem Aranha?
— Em 2020 já terão sido feitos pelo menos 7 filmes do
Aranha!
Os olhos do garoto brilharam mais uma vez. Nada que eu o
havia contado antes pareceu mexer tanto com suas emoções.
— A Marvel vai ter um estúdio de cinema próprio e vai levar
um monte de super-heróis para a telona. Você vai se emocionar vendo o Hulk
protegendo a Betty Ross de um helicóptero, vai chorar vendo o Capitão América
gritar "Avante Vingadores" e antes disso, vai se sentir uma criança novamente quando
ver o Homem Aranha se balançando pelos prédios numa tela de cinema pela
primeira vez. Vai ser algo tão marcante que você nunca mais vai se esquecer!
— Caramba! — Seus olhos tinham ficado marejados de verdade.
Eu tinha me esquecido como era ser tão jovem e tão cheio de vida. Aquele garoto
era tudo que eu tinha esquecido como ser, e mesmo depois de contar todas as
agruras que iríamos encarar nos próximos anos, ainda assim ele ficava
emocionado em falar sobre seus personagens de quadrinhos preferidos. Nossa
grande fuga da realidade. Nosso único refúgio.
Eu já estava próximo da porta quando mais uma pergunta
chegou a meus ouvidos:
— Mas e a DC? Como serão os filmes do Superman, do Batman,
do Flash?
Eu não sabia bem como responder aquilo e preferi me abster
de uma resposta. Já tinha decepcionado aquele garoto demais por uma hora, ele
não precisava saber a verdade.
O meu eu de 14 me acompanhou até o quintal e me viu entrar
na máquina do tempo. Antes de me despedir, dei-lhe um último conselho e ele me
ouviu com atenção:
— Ah... e nos próximos anos, vê se evita usar muito boné e
tome menos banhos quentes. E faça mais exercícios físicos também. Daqui a 20 anos você vai me agradecer!
Uma luz amarelada nos engolfou e a última coisa que vi foi o
aceno do garoto magrelo que tinha sido a minha única companhia na última hora.
Eu não sei se o havia deixado muito feliz com minha visita, mas voltei para
2020 com a lembrança daquele brilho nos olhos que eu nem sabia mais que um dia
havia existido. Quem sabe agora que tinha me reencontrado, eu teria o meu tão
esperado final feliz. Quem sabe?
AUTOR DESCONHECIDO