Conheci os textos de Edgar Allan Poe há alguns anos, quando uma citação de um de seus contos mais famosos, O Corvo, apareceu no filme homônimo estrelado por Brandon Lee, o filho de Bruce Lee no longínquo ano de 1994.
Apesar da confusão que isto causa em algumas pessoas, o filme dirigido por Alex Projas e que ficou mais conhecido por ter sido o último da carreira do jovem Brandon (que morreu baleado nas filmagens), não tem nada a ver com o conto de Allan Poe, exceto a tal passagem declamada pelo personagem de Brandon, Eric Draven, um guitarrista que é brutalmente assassinado com a noiva no Dia das Bruxas.
Recebi na faculdade a dura tarefa de "continuar" outro dos textos mais expressivos de Edgar Allan Poe, "O Barril de Amontillado", criando um texto narrativo que contasse o que teria acontecido após os fatos descritos pelo próprio Poe.
Ousado, não?
Pois eu encarei o desafio, e o conto a seguir, narra o que aconteceu logo após o ponto onde o escritor inglês encerrou sua história.
Para melhor compreendimento, é recomendado ler o conto original linkado abaixo:
Montresor raramente era visto à luz do dia. Quando o fazia,
se assemelhava a uma gárgula cinzenta se arrastando de dentro de seu palácio
com a capa negra arfando pesadamente e a bengala de adorno de rubi encrustado
no cabo a bater no solo. A vizinhança o via como um velho tolo de hábitos rudes
cuja família, esposa e filha, haviam-no abandonado. Parecia não possuir nenhuma
estima por qualquer pessoa viva, olhava-as com extrema arrogância, mas durante
suas raras rondas por Londres era visto sempre a caminho do cemitério onde
visitava o túmulo dos pais, aparentemente sua única ligação com aquele mundo.
Num certo dia chuvoso de Julho, Montresor pediu que seu
chofer estacionasse a charrete puxada por dois belos cavalos negros diante de
uma casa suntuosa próxima a Baker Street. Sem nada dizer, ele permaneceu por
duas intermináveis horas a observar as moradoras. Guinevere era ruiva, na casa
dos trinta anos, a pele salpicada de sardas e dona de belíssimos olhos
cor-de-mel. Estava prostrada sobre a cama da filha Sophie contando-lhe um conto
de James M. Barrie, e por um instante Montresor pode ver seu rostinho. Tinha as
feições do pai. O peito encheu-se de amargura.
As visitas soturnas a Guinevere e Sophie eram dolorosas, e
Montresor sentia-se melhor entre os mortos. “Há quanto tempo dura essa angústia, velho? Cinquenta anos? Mais?”,
indagava-se ele, incapaz de descobrir as próprias razões de sua inquietude.
Via-se dia após dia como a definhar, sem saber ao certo o que o afligia, quando
numa tarde nebulosa a resposta pareceu surgir-lhe como um solavanco.
Voltava do cemitério quando um envelope escarlate preso ao
portão o sobressaltou. “Uma
correspondência?”. Com as mãos trêmulas da velhice que o assolava,
Montresor apanhou o envelope e meteu-se biblioteca adentro. O abridor de cartas
oscilou e enfim a abriu. Os dizeres em letras muito bem caligrafadas lhe
causaram um sobressalto, e então todo um passado muito bem enterrado em uma
cave voltou-lhe à tona. Depois de tantos anos, vários malditos anos, alguém
resolvera assombrá-lo.
No dia seguinte, após uma noite insone, Montresor
arrastou-se até uma espigada igreja em estilo gótico que de destacava em meio à
metrópole sombria. Há muito que havia esquecido aquele caminho do qual preferia
não voltar a trilhar, mas aquela lhe parecia uma ótima oportunidade de reatar
seus laços com o maldito Deus que o via morrer em vida sem nada fazer.
- Padre, perdoe-me, pois eu pequei.
De trás do confessionário o Padre Clarkson espantou-se em
ouvir aquela voz grave uma vez mais.
- Montresor? Que bons ventos o trazem à casa de Deus depois
de tanto tempo?
- Acho que Deus não tem muito a ver com os motivos que me
trouxeram até aqui, Padre.
- Deus está presente em todas as coisas, Montresor, quer
acredite ou não.
Houve uma pausa, então o Padre prosseguiu:
- O que o aflige a ponto de tirá-lo de sua casa, homem?
Soube que não tem saído muito
à luz do dia já há alguns anos, exceto para visitar o túmulo dos pais.
à luz do dia já há alguns anos, exceto para visitar o túmulo dos pais.
Ouviu-se uma espécie de rosnado, então a voz rouca soou no
confessionário.
- Meus pais me fazem lembrar de uma época mais próspera para
minha família. Uma época onde o poder significava tudo.
- Você ainda é um homem abastado economicamente. O que o
traz aqui não é a falta de riquezas.
- De certo que não. Ainda possuo meio de comprar metade
dessa cidade decadente!
- Imagino que sim. Lembre-se, no entanto, que é mais fácil
um camelo...
- O velho ditado que ricos não vão para o céu, Padre? Este é
velho. Já me contaram pelo menos umas três vezes antes. Não estou aqui para
ouvir ditados e ladainhas. Preciso confessar-lhe algo.
- Estou ouvindo.
O velho Padre ajeitou os óculos circulares sobre o nariz
adunco e então começou a ouvi-lo. Montresor falou de um envelope escarlate, da
caligrafia refinada no interior da carta e de repente estava mergulhado no
passado. O salão carnavalesco, o bufão e a isca do barril de amontillado. O tom
ficava cada vez mais sombrio à medida que Montresor e Fortunato desciam o porão
rumo a cave. E então o ápice da confissão.
- Cometeu o pecado mortal, Montresor?
- Sim, Padre. Durante esses longos cinquenta anos não me
arrependi um dia sequer. Faria tudo de novo, sem culpa. Até essa manhã. Até o
envelope escarlate.
- Mas por que, em nome de Deus, cometeu esse crime? Ele não
era seu amigo?
- Fortunato era um biltre. Um verme a ser eliminado. Seu
erro fora ousar ofender o nome de minha sagrada família. Mereceu morrer naquela
gruta escura.
Na sombra do confessionário, Clarkson parecia incrédulo.
- Quem o teria descoberto depois de todos esses anos?
- Não tenho ideia.
- Está aqui para mais do que se confessar, Montresor. Está
querendo o perdão.
- Deus irá me perdoar, Padre?
- Deus talvez, Montresor, mas não eu.
Houve novo silêncio. O velho procurou balbuciar algo, mas as
palavras escaparam-lhe.
- Havia uma assinatura na carta, não havia?
- Como eu disse, Padre. Apenas uma letra “c” manchada de
vermelho...
De repente um instante de dúvida na mente de Montresor.
- Na noite em que levou Fortunato até o palácio eu estava
presente no baile de carnaval. Observei-os conversando depois os segui. Acompanhei
o momento que entraram juntos e metaforicamente aguardo meu irmão sair de lá
desde então.
Novo sobressalto.
- Irmão? Que temeridade é essa, Padre?
- Sim. Fortunato era meu irmão de criação. Viera para
Londres ainda infante. O mais querido da família. Esperei que minhas suspeitas
estivessem erradas até o fim, mas você mostrou-se o ser vil do qual eu
desconfiava desde sempre. Você, o homem que esperei que confessasse seu crime e
que nunca o fez espontaneamente, como o covarde que é. Em desespero, qual não
foi sua primeira reação ante uma carta que o incrimina? Procurar por Deus.
O ar faltava nos pulmões de Montresor. Depois de tanto tempo
ele havia sido pego e tendo ele próprio confessado o crime, não havia o que
fazer. O rubi encrustado no cabo da bengala antecedeu o peso de seu próprio
corpo ao chocar-se no chão da sacristia. Clarkson olhou-o com desprezo,
estirado, a procurar pelo ar que lhe fugia, e por um momento ele sentiu-se como
um pé bruto a esmagar uma serpente venenosa. Em seguida tudo que restou foi o
silêncio.
Rodrigo Lourenço
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