Hoje isso pode até soar inverossímil, mas houve uma época em que os humoristas da TV podiam fazer livremente piadas racistas, homofóbicas e de cunho meramente jocoso que ninguém parecia se ofender. Houve também um período em que a TV mostrava filmes de terror ou com conteúdo erótico sem se importar com o horário da grade, e nenhuma criança ou adolescente cresceu perturbada ou pervertida (bem, quase nenhuma) por conta disso. Hoje, esses mesmos “ex-garotos”, todos devidamente barbados e independentes, olham para a realidade e notam a sociedade de bundas-moles que o Brasil hipocritamente tem tentado se tornar, comparada ao que era num passado nem tão distante assim. Reflexos dos novos tempos? Era de aquário chegando? Não sei, só sei que um súbito moralismo parece ter se instaurado e não dá indícios de que irá embora tão cedo.
O Brasil viveu seu período mais negro... Digo, seu período mais afrodescendente durante a Ditadura Militar (que durou de 1964 até meados de 1985), e houve uma época muito extensa de cerceamento da liberdade artística acima de tudo. Quando essa fase conturbada enfim terminou, um grito de liberdade foi dado, e foi aí que a classe artística, em especial aqueles que tinham acesso direto com o grande público seja escrevendo letras musicais ou piadas, pôde enfim falar na cara do país tudo aquilo que estivera engasgado durante anos. E olhe que tinha um bocado de coisas a ser dito!
Dá pra imaginar o que aconteceu em seguida: Liberdade de expressão em sua mais pura e deslavada forma.
Com o progresso e a revolução tecnológica a Internet começou a ocupar um espaço, que até então, só era usado pela televisão, e todo o controle massivo e político de seus canais (mais notoriamente a TV do “plim-plim”). O povo só assistia o que eles permitiam, logo, se não houvesse nada que atrapalhasse o andar da carruagem como alguma crise econômica, ninguém teria do que reclamar. A mesma técnica do pão e circo já comentada aqui.
Atualmente é muito mais fácil dar voz a sua opinião pela Internet, seja através das redes sociais, blogs ou sites de relacionamento, e as palavras ditas ganham um âmbito muito mais extenso do que se era possível em tempos remotos. Como se pode falar o que quiser (e como consequência, às vezes, ouvir muito do que não se quer também), é mais fácil se convencer pessoas que pensam como você a protestar por algo, reclamar ou simplesmente xingar muito no Twitter! Estaria aí a explicação para aquele ditado ridículo de que a voz do povo é a voz de Deus?
Em que momento nos tornamos um povo melindrado que se ofende com qualquer piadinha? E a partir de quando as ditas “minorias” ganharam força absoluta de entrar com processos contra humoristas por qualquer comentário que os ofenda, se escondendo atrás do agora crescente combate ao preconceito?
Em tempos menos enfadonhos, tínhamos o Dedé chamando o Didi de “cearense”, de “Paraíba” sem que os nordestinos organizassem marchas para protestar contra o humorístico Os Trapalhões. O próprio Mussum, na brincadeira do contexto, reclamava que o chamassem de “preto” (“Pretis é seu passadis!”) e rolavam também muitas piadas sobre negros e gays no programa. Vale lembrar que, posteriormente, um homossexual assumido passou a integrar o grupo, ou alguém se esqueceu do Jorge Lafond?
Os Trapalhões seria um programa que não teria espaço na TV atual devido o nível de piadas de cunho, digamos assim, preconceituoso que eram feitas na época. O melhor quarteto de humor do país estaria condenado a pagar processos e mais processos se existissem na TV do século XXI, e jamais seriam conhecidos ou reconhecidos pelo que sempre souberam fazer muito bem: Causar o riso.
E alguém aí se lembra do Caco Antibes do humorístico Sai de Baixo e suas intermináveis "observações" sobre pobre? Não me lembro de ter havido nenhuma passeata dos menos favorecidos economicamente contra o personagem de Miguel Falabella!
Os componentes do CQC, programa jornalístico/humorístico da Band, vêm experimentando toda a marcação cerrada sobre o que eles dizem livremente no próprio programa e no Twitter, e não são raras as notícias de grupos ou entidades que entram com processos contra alguns deles por conta disso.
Comentários como "Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz", citada por Danilo Gentili (integrante do CQC) sobre a implantação do metrô num bairro nobre de São Paulo e “mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”, dita por Rafinha Bastos em entrevista à revista Rolling Stones, repercutiram negativamente para os dois humoristas, que hoje são taxados de antissemitas e machistas, entre outros adjetivos muito piores. Os comentários foram sim, de muito mau gosto, vão contra tudo aquilo que representa a moral e os bons costumes e extrapola e muito o limite (se é que ele existe) do chamado humor negro... Digo, humor afrodescendente, arte que os dois companheiros de Stand Up Comedy são mestres.
Se por um lado todos podem falar o que querem gozando da liberdade democrática estipulada após o fim das censura e do regime militar, esse mesmo direito é dado a quem se sente ofendido com as piadas cada vez mais comuns que privilegiam o insulto, o preconceito e a humilhação. Outro caso de conhecimento geral foi o quadro do humorístico da MTV Comédia MTV “a casa dos autistas”, que gerou grande movimentação na mídia pela forma apelativa com que os atores liderados pelo talentoso Marcelo Adnet parodiavam a antiga Casa dos Artistas do Silvio Santos, utilizando personagens que fingiam ser autistas, pessoas que na vida real sofrem de uma disfunção global do desenvolvimento que afeta a capacidade de comunicação, de socialização e de comportamento do indivíduo.
Adnet, assim como Gentili e a piada sobre judeus, se desculpou posteriormente pelo ocorrido, e alegou que ele não podia ser responsabilizado pelo quadro, uma vez que ele nem concordava com ele, mas que fora obrigado a fazê-lo, respeitando o diretor do programa.
O caso que evidencia ainda mais essa ânsia das classes minoritárias de entrar com processos com qualquer coisa que se fale na mídia aberta, foi o do apresentador Marcos Mion do programa Legendários da Rede Record, que resolveu fazer uma brincadeira (nesse caso bem clara) sobre o “pacote” da colega de emissora travesti Nany People: “Ô, Nany, como você faz para esconder o pacote?”.
Segundo uma ONG gay, Marcos Mion estava discriminando Nany People por conta do comentário jocoso, o que logo foi derrubado por terra, uma vez que a própria Nany divulgou nota considerando a ação da ONG absurda e alegando ser amiga de Mion nos bastidores. Homens tem “pacote”, certo? Travesti é um homem fantasiado de mulher, certo? Logo, tem “pacote”, porra!! O que houve de discriminatório nisso??
Piadas antissemitas, possíveis apologias ao crime e tiração de sarro com pessoas deficientes físicas ou mentais obviamente causam desconforto a quem se sente atingido diretamente e são sim, de certa forma, condenáveis, mas a banalização com que esses “protestos” e “marchas” vêm sendo tratados tem transformado o Brasil num país com um ar falso de politicamente correto. Tudo é passível de melindragem, nada mais é levado na esportiva e de repente nos tornamos uma sociedade hipócrita que condena o humor negro (e em breve todo tipo de humor), mas que idolatra certas manifestações culturais como “pentadas violentas” e “surra de bunda”.
Não se veem protestos contra dinheiro na cueca de parlamentares ou da corrupção no futebol, muito bem disfarçada por baixo dos gritos ensandencidos da torcida apaixonada e da narração contagiante do Galvão Bueno. Então por que toda essa fúria contra o preconceito se nunca antes ninguém protestou contra nada de errado no Brasil? E por que não haver também marchas e passeatas contra o aumento de salário de parlamentares em detrimento do salário de fome que recebem os professores da rede pública, policiais e bombeiros? Ou contra a utilização de dinheiro público para a contrução e reconstrução de estádios para a Copa do Mundo, evento que não serve para nada além de enriquecer as empresas privadas e comerciais que faturarão alto com o turismo propiciado por ele? Ou vai dizer que Copa serve para mais alguma coisa?
“Mas Rodman, em dia de jogo da Seleção eu só trabalho meio período. Sem falar que o futebol é a paixão nacional, e o povo é mais patriota em época de Copa!”
Ah, tá! Agora vi motivo!
Juro que não consigo entender o Brasil.
Protestos e indignações são bem vindos quando bem direcionados, o que me incomoda é o grau que isso está tomando no Brasil, quase como se estivessemos próximos da volta da censura (fato que já comentei aqui) no país. Em certos momentos vemos que é possível se falar o que quer, direito conquistado e irrevogável num país dito democrático, mas alguns assuntos ainda são intocáveis e quem ultrapassa essa linha paga o preço com belos e extensos processos nas costas. Não há uma solução prévia para isso, exceto que o bom senso impere na consciência de cada humorista antes de formularem suas piadas (que tal falarem apenas de papagaios ou do Joãozinho??) ou que as minorias parem de se ofender por qualquer coisa dita sobre eles. Como bem imagino, nem uma coisa nem outra vai acontecer, portanto, esse assunto ainda continuará a ser discutido num looping infinito e nós estaremos chafurdando cada vez mais na hipocrisia e na neurose dos grupos minoritários perseguidos enquanto ouvimos piadinhas de "humor escurinho".
E viva o Brasil, o país mais bunda mole que já se viu!
No Blog Na transversal do Tempo, o autor Gilson Junior comenta de forma muito mais abalizada o mesmo assunto. Vale a pena conferir.
NAMASTE!