"Não existem finais felizes. Nunca. Eles são totalmente inventados por escritores de ficção que escolhem terminar a história com um ponto alto".
PETER DAVID
Foi divulgado recentemente na mídia especializada o falecimento de um dos mais talentosos e reverenciados roteirista de histórias em quadrinhos, o incrível Peter David, aos 68 anos.
Nascido em 1956 no estado de Maryland, teve uma passagem
muito marcante por duas das editoras mais famosas do mundo. Para a Marvel, no
final dos anos 1980, redefiniu o personagem Hulk e modernizou muitos dos
conceitos criador lá nos anos 1960 por Jack Kirby e Stan Lee.
Ao lado do desenhista Todd McFarlane, escreveu algumas das
histórias mais emblemáticas com o Hulk cinza e criou o Senhor Tira-Teima, uma
das personalidades mais sacanas de Bruce Banner que era o leão-de-chácara de
um poderoso criminoso da cidade.
Para o Homem-Aranha, ele escreveu um dos arcos mais
memoráveis da minha vida que foi a Morte da Capitã Jean DeWolff — que eu já
devo ter citado algumas vezes por aqui, e uma das imagens dessa HQ está até no
banner principal do blog.
Na época dos formatinhos da Editora Abril, essa história chegou às minhas mãos quando eu devia ter uns 11 ou 12 anos. A narrativa era muito mais séria e dramática do que eu estava acostumado a ler com o meu super-herói favorito e acho que foi isso que me marcou tanto.
No enredo, um assassino mascarado denominado “Devorador de
Pecados” começa a matar figuras públicas da cidade de Nova York, colocando o
Homem-Aranha e o Demolidor em uma investigação conjunta para descobrir a real
identidade do criminoso, além de frear as suas ações.
Para Peter Parker, a coisa é levada para o lado pessoal
quando o Devorador mata a capitã de polícia Jean DeWolff — uma de suas únicas
aliadas dentro do departamento — e, quando mais tarde ele tenta matar Betty
Brant, a secretária de J.Jonah Jameson — que era o verdadeiro alvo do cara — e
antigo affair de Peter.
Para Matt Murdock, é seu lado advogado que fala mais alto.
Uma das vítimas é um juiz com quem ele já havia trabalhado antes e o herói cego sai pela cidade
em seu uniforme de Demolidor na intenção de prender o Devorador de Pecados e
fazer com que a justiça seja cumprida.
Para Peter, no entanto, é o sentimento de vingança que fala
mais alto, o que coloca os dois vigilantes em lados opostos, os fazendo, inclusive,
sair no soco para provar o seu ponto.
A luta entre os dois me marcou bastante também porque foi a
primeira vez que vi o Aranha levando a pior. Peter David criou um roteiro de
cinema em duas poucas edições — na Abril, a nº 87 e 88 do Homem-Aranha — e aquilo foi
o bastante para deixar o pequeno Rod Rodman impactado para o resto da vida.
Ainda falando de Homem-Aranha, mas de um futuro muito
distante, agora ao lado do talentoso artista Rick Leonardi, Peter David
desenvolveu todo o conceito do Homem-Aranha 2099.
Naquele tempo, nada sequer parecido tinha sido desenvolvido
pela Marvel e foi um choque positivo muito grande ver as primeiras páginas da
versão futurista do Escalador de Paredes que não era mais Peter Parker e
sim Miguel O’Hara.
Para um moleque de doze anos todo o visual cyberpunk do Aranha 2099 era muito massa e é claro que eu fiquei maluco para ler mais sobre o universo onde aquele cara vivia. Por falta de grana, eu não consegui acompanhar os gibis onde eram lançadas as suas histórias no período, e só muitos anos mais tarde é que consegui comprar um encadernado da Panini onde todo o primeiro arco foi lançado.
E sim, a
nostalgia bateu forte.
Nos anos 1990 os X-Men eram o carro-chefe da Marvel e tudo que era lançado nas bancas com o "X" na capa vendia horrores.
Peter David ficou a cargo de escrever a nova versão do X-Factor e deu àqueles mutantes de time "B" da Marvel uma profundidade que ninguém mais tinha pensado em dar.
É roteiro de David uma das passagens mais legais do Mercúrio onde o velocista explica numa sessão de terapia como é entediante o mundo à sua volta, já que ele enxerga como se tudo estivesse em câmera lenta o tempo todo.
Enquanto os X-Men saíam na porrada dia sim, dia não com o Magneto fazendo pose de halterofilista, os X-Factor estavam mais preocupados com a sua saúde mental e como os seus poderes podiam afetar as pessoas ao seu redor. Esse arco é muito bom.
De volta ao Hulk, em parceria com outro artista já saudoso,
o George Pérez, Peter David deu vida também ao arco “Futuro Imperfeito”, onde o
Bruce Banner do presente é obrigado a viajar para o futuro a pedido de um Rick
Jones idoso e enfrentar a sua versão déspota imortal, o terrível Maestro.
Esse também foi outro arco que eu demorei a ler, mas que me
conquistou de uma maneira muito rápida e que me fez entender porque era tão
aclamada à época de seu lançamento.
Pulando o muro das editoras e falando um pouco de DC, Peter
David também revolucionou alguns dos personagens mais conhecidos de lá, em
especial o Aquaman.
Se hoje lembramos da figura do Rei da Atlântida como um
sujeito casca-grossa, cabeludo e porradeiro, isso se deve à repaginada que
Peter David deu ao personagem ali pelo final dos anos 1990.
Quem não se lembra daquela imagem icônica do Arthur cabeludo
e barbudo com um gancho no lugar da mão decepada?
Ninguém levava esse personagem a sério até aquele momento —
um cara que se comunica com peixes! —, e foi com base nos roteiros de David
para o Aquaman que ele se tornou relevante para a DC a partir de então.
Outra grande contribuição de David para a DC foi a criação
da Justiça Jovem que reuniu o Robin (Tim Drake), o Superboy (Conner Kent) e o
Impulso (Bart Allen) numa mesma equipe que surgiu para substituir os Novos Titãs,
que naquele fim de século — ali próximo dos anos 2000 — já não eram mais tão “novos” assim.
Aliás, o Impulso foi uma criação do Peter David e o
personagem foi amplamente usado na animação Justiça Jovem da Warner que teve quatro
ótimas temporadas e que usou muitos dos conceitos desenvolvidos pelo autor em
seus diversos episódios.
É triste pensar que mesmo tendo criado tanta coisa para
ambas as editoras, de ter contribuído para que tanto Marvel quanto DC
faturassem milhões com seus personagens, David tenha morrido na pobreza quase
completa.
Enfrentando vários problemas de saúde em decorrência a um
AVC que sofreu há alguns anos, os familiares do autor precisaram recorrer a um
financiamento coletivo pela internet — uma espécie de vaquinha — para poder custear os seus caríssimos
tratamentos de saúde.
Por não haver um sistema como o SUS nos Estragos Fudidos, lá
a coisa é muito mais pesada quando se trata de saúde, e ninguém que não seja
milionário consegue custear esses valores.
Nem Marvel e nem DC se indignaram a pagar as despesas
médicas de Peter David, mesmo ele tendo atuado por tantos anos como
roteirista para as duas. No mundo do capitalismo selvagem em que vivemos, o seu nome de
criador nos créditos de filmes, séries e animações aparecem bem pequenos no
encerramento e isso é o máximo de “reconhecimento” que você terá por ajudar a
empresa que te empregou a faturar milhões às suas custas.
Que descanse em paz, Peter David. As suas histórias ficarão
para sempre em nossa memória.
NAMASTÊ!