8 de maio de 2020

Crônica de Aniversário: Propósito



Será que todos nós temos mesmo um propósito na vida?

Há mais ou menos um ano eu comecei a fazer terapia - o nome certo não é esse, mas em frente - e uma das perguntas que fiz à minha psicóloga naquelas sessões de 50 minutos foi justamente essa: Todos nós já nascemos com algum propósito?

A resposta dela na época foi bem enfática e me levou a acreditar que, afinal, nós não somos tão especiais assim e que a ideia de que estamos aqui para cumprir uma missão divina ou atendendo aos desígnios de uma criatura de energia que controla o universo bem como nossas ações é apenas um autoengano do qual nos nutrimos para que nossa vida tenha algum sentido. Nós NÃO TEMOS nenhum propósito a cumprir em nossas vidas, embora nos agarremos a essa vã esperança de que "ainda tenho uma missão a cumprir" para poder acordar todos os dias. Você não é o Ethan Hunt, logo não há missão impossível nenhuma para cumprir. Relaxa.

Uma das coisas que me leva a pensar bastante no assunto é o motivo que temos para levantar da cama no dia seguinte, já que tudo isso é apenas comandado pela sua força de vontade. Por que atender o chamado do despertador e encarar outro dia extenuante de trabalho? Por que se submeter aos mandos e desmandos de um sujeito que só existe para ganhar dinheiro e humilhar os funcionários dia após dia, fazendo-os até duvidar que ainda têm autoestima? Que propósito grande o suficiente é esse que me força a sair da cama mesmo quando o aconchego do edredom e a maciez do lençol é tudo que necessito para fingir por alguns instantes que eu não existo realmente? E existir pra que? Qual o propósito de existir?

"Que bom viver, como é bom sonhar
E o que ficou pra trás passou e eu não me importei
Foi até melhor, tive que pensar em algo novo que fizesse sentido
Ainda vejo o mundo com os olhos de criança
Que só quer brincar e não tanta responsa
Mas a vida cobra sério e realmente não dá pra fugir"

No começo da minha vida adulta eu me vi pressionado a tomar uma atitude séria quanto ao meu destino e foi meio que um carro velho forçado a embalar na ladeira. Eu tinha sido até então um moleque tímido e retraído com sérias dificuldades de socializar devido uma infância reclusa e enclausurada. Eu não sabia o que deveria ser ou querer. Tinha uma leve ideia de que gostava de arte, quadrinhos, desenhos e criações, mas vivia ouvindo de todo mundo que "isso é besteira", "isso não dá dinheiro", "que tal fazer alguma coisa de homem, tipo bater uma laje?". Passei o restante dos anos após esse chacoalhão estudando - passei por duas faculdades - e trabalhando porque eu achei que era isso que eu devia fazer, que esse era meu propósito mais imediato. 

Não era. 

Ao longo desses anos de muito trabalho - embora muita gente nem considere que lecionar seja um trabalho - eu tive pouco tempo para reencontrar comigo mesmo e os medos e angústias não sumiram por conta de eu estar muito ocupado. Eles só foram realocados dentro da minha cabeça, de modo que à princípio eles não ficassem muito evidentes, mas que estivessem à espreita, prontos para darem as caras novamente quando eu menos esperasse. 

Enquanto eu trabalhava tentando dizer a mim mesmo que aquele era meu propósito - e realmente foi por algum tempo, já que ensinar as pessoas é algo que nos faz pensar que somos especiais - eu fui deixando minha vida pessoal de lado. Em minha mente, o tempo não ia passar tão rápido. "Eu vou trabalhar bastante aqui por algum tempo, mas daqui a pouco eu começo a pensar em mim mesmo. Eu ainda tenho uma vida inteira pela frente..."

Eu não tenho mais uma vida inteira pela frente.

Enquanto eu achava que o trabalho e os estudos eram meu propósito, eu ignorei todo o resto e o tempo passou incrivelmente rápido aos meus olhos. Eu não tenho mais meus vinte e poucos anos. O que vejo no espelho todos os dias chega a ser assustador. Como foi que a velhice me alcançou tão rápido? Onde eu estava todo esse tempo que não vi ela chegando?

Eu estava ocupado pensando em cumprir a minha missão. 

Eu só não sabia que nunca tive uma

"Todas as graças da mente e do coração se escapam quando o propósito não é firme."

William Shakespeare

Depois de toda a provação que passei em meu último emprego - provação essa amenizada deliciosamente pela sensação de dever cumprido ao dar aulas - eu decidi desligar o piloto automático que comandava minha vida por anos e reassumir o volante. Foi desconfortável. Fazia muito tempo que eu não passava em companhia de mim mesmo e o sujeito no banco do carona me parecia tristemente com uma sombra pálida do que já tinha sido antes. Mas às vezes eu o reconhecia. Poucas vezes. 

Na companhia incômoda de mim mesmo eu procurei recuperar o tempo perdido e fazer algumas coisas que estavam nos planos rascunhados desde muito antigamente. Meu corpo, é claro, sofreu o baque da parada abrupta e começou a apresentar alguns sinais de fadiga. Se antes a mente mandava o corpo trabalhar incessantemente para que eu desse conta de meu emprego e suas funções, agora ele estava em total relaxamento e estranhou. "Ei, espere! Tome aqui essa pedra no seu rim para que se lembre de o quanto você se neglicenciou, estúpido". Passei a lutar contra uma pedra, ainda me recuperando do luto de um fim de relacionamento - esse, tão efêmero quanto cáustico - e o fim dele só me fez entender ainda mais o quanto eu estava sozinho. Se antes eu tinha criado alguns propósitos - vida a dois, filhos, etc... - agora mais uma vez eles não existiam. 

"Ao longo da vida, as pessoas vão sempre acabar te decepcionando. Algumas com algum propósito e outras sem querer. Mas quem escolhe sofrer ou superar cada uma dessas decepções não são elas, é você."

Carolina Bensino  

Eu nunca imaginei que estaria vivendo semanas tão melancólicas durante uma pandemia, mas agora que pude reencontrar comigo mesmo nesse isolamento, após quase duas décadas, tem sido ainda mais difícil acreditar que foi isso que restou. Eu não tenho mais um propósito e é ainda pior saber disso vendo um vírus ainda sem cura levando tanta gente ao redor do mundo. Centenas, milhares de pessoas que talvez tivessem algum propósito, que estivessem cumprindo alguma missão em vida e que foram embora cedo demais. Filhos de alguém. Namorados de alguém. Mães de alguém. Avós de alguém.É difícil olhar para o que está acontecendo e ainda manter esperança de "dias melhores", de que "a humanidade ainda vai dar certo". No Brasil, enquanto lutamos contra o vírus e o governo negacionista, continuamos dentro de casa, esperando uma solução mística, divina, científica - essa sim, mais provável - para vencer a doença. Aos que não tem mais esperança de muita coisa - Presente! - cabe apenas a solidão de dias cada vez mais frios e escuros, onde fica um tanto mais difícil de enxergar um propósito. 

Seu propósito na vida é encontrar um propósito e dedicar a ele todo o seu coração e a sua alma.

Sidarta Gautama (Buda) 


NAMASTE... Ou Não! 

3 comentários:

  1. Fiz aniversário mês passado e me identifiquei bastante.

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    1. Infelizmente tem muita gente passando por esse momento de despropósito. Sigamos juntos.

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  2. O propósito da vida? Talvez seja interessante começar por Aquele que disse que era o Caminho, a Verdade e a Vida.

    Jo 5:24: "Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida."

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