31 de dezembro de 2020

Reencontro com o passado

Um conto de Natal fora dos padrões.


Estava velho demais para acreditar em Papai Noel, mas naquela madrugada eu roubei uma garrafa de sidra da geladeira, destampei e comecei a beber sozinho no quintal de casa, à espera do tal velho batuta. Ainda dava para ouvir as pessoas do lado de dentro da casa comemorando o Natal. Caía uma garoa fina sobre minha cabeça. O gosto do champanhe de pobre agora se misturava à água que caía da calha velha. Pouco me importava. Nunca tinha sido de beber, não sentia vontade de encher a cara e pouco me atraía por álcool. Gostava de manter minha sanidade... a pouca que tinha me restado naquele ano desgraçado.

Veio como um brilho intenso, amarelo, ofuscante. Ouvi meu cachorro ganindo. Ele levantou-se com dificuldade de sua casinha, andou para perto de mim bamboleando os quadris envelhecidos, sacudiu o pelo branco encardido e ensaiou um latido. Eu tinha acabado de dar um gole na bebida amarga. Olhei para o fundo do quintal. Uma silhueta corpulenta surgiu das sombras, arrastando alguma coisa grande e pesada atrás de si. O cão mais uma vez fez menção de latir, mas ficou olhando com curiosidade a figura que começava a se aproximar da luz de uma lâmpada mal rosqueada num bocal torto sob onde estávamos os dois.

— Foi aqui que pediram uma... — A voz rouca calou-se por um segundo. O homem maciço ajeitou o par de óculos sobre o nariz adunco e leu em um papel amassado: — máquina do tempo?

Me sobressaltei em meu assento improvisado, o degrau onde havia deixado meu corpo cair assim que cheguei ao quintal. Meu cachorro começou a abanar o rabo para o velhinho simpático, e pela primeira vez, percebi que estava na presença do próprio Papai Noel. Havia uma caixa enorme atrás dele, algo em torno de uns dois metros, dois metros e vinte de altura. Ele a tinha arrastado até a luz sem muita dificuldade e só então comecei a reparar em suas vestes. Nada de casaco vermelho, gorro com pompom ou botas para a neve. Parecia mais um daqueles velhos bêbados que encontrávamos aos montes pelas esquinas após a ceia de Natal. Camisa de botão, calça jeans velha e chinelo.

— Tem certeza que é para mim? — Perguntei a ele, deixando a garrafa de lado. Meu cachorro apresentava intenção de descer o degrau, mas é como se ele estivesse avaliando antes se valia o esforço. Parecia que não valia. — Não sei se fui um bom menino esse ano!

Eu ironizei, com um sorriso no rosto. O homem pareceu me avaliar, como se estivesse se certificando de que não errara o endereço. Aquilo seria bem frustrante!

— Temo que seja para você mesmo o presente. Não posso dizer que foi o ano em que esteve mais bem-comportado, mas medi seu merecimento pela média dessa espelunca de país onde você vive. Que bela merda, hein? E que gente mais mal-educada!

Não era o tipo de linguajar que eu esperava de um Papai Noel… mas aquela também não era a aparência que eu imaginava dele!

— Nem lembrava que tinha pedido um presente esse ano!

Ele me olhou meio que infeliz e respondeu de prontidão:

— Pois está aqui! Faça bom uso. Deu um trabalho do cão arrastar essa bosta até seu quintal!

O velho acenou em seguida, ajeitando a calça por cima da pança volumosa. Caminhou de volta até a sombra de onde tinha surgido e desapareceu, desejando um “feliz Natal”.

Eu nunca tinha acreditado em Papai Noel e jamais havia comemorado aquela data tão carregada de tristeza antes daquele ano. O desespero tinha feito eu me apegar a crenças que antes eu considerava insólitas e era curioso que bem daquela vez algum pedido meu tinha sido atendido. Queria estar bem longe dali, num lugar onde não pudesse ser encontrado por mais ninguém e então pedi com toda fé a alguma entidade cósmica que ela permitisse que eu voltasse no tempo para corrigir meus erros. Eu estava cansado demais para sequer desejar continuar dali e então comecei a olhar para trás, para tudo que eu tinha, tudo que eu era e que estava cada vez mais morto dentro de mim.

A máquina do tempo era velha e parecia caindo aos pedaços. Caminhei até a cabine, abri a porta e me enfiei dentro dela. O espaço era apertado, dava para uma pessoa e nada mais. Dei uma última olhada para meu cachorro e agradeci que ele não tivera coragem de descer o degrau para me seguir. Já não tinha mais o mesmo vigor de antes. Estávamos em situação semelhante. Os controles do aparelho não pareciam complexos. Acionei um botão vermelho. Senti a cabine começar a tremular. Pensei numa data em que gostaria de voltar. “Que tal voltar exatos 20 anos... o começo da minha vida adulta? Eu poderia me aconselhar, dizer todos os caminhos que deveria tomar para não acabar como eu estava agora... poderia me dar dicas do que fazer para me tornar alguém melhor, alguém mais importante, alguém mais inteligente… eu poderia voltar para minha infância... revisitar meus brinquedos velhos, a mesa de futebol de botão, os jogos de tabuleiro... eu poderia...”

A máquina brilhou e num estalo eu estava em outra época, no mesmo quintal. Saí cambaleante da cabine e olhei ao redor. As paredes tinham outra cor, a casa estava menos deteriorada, o cheiro das plantas de minha mãe ainda podia ser sentido dali. Dei a volta e alcancei a porta de entrada. Nada era como eu me lembrava. A vizinhança era diferente. A rua era mais calma, havia menos movimento do lado de fora. Meu cachorro ainda não existia. Entrei em casa e tratei de dar uma olhada no calendário... em meu momento de indecisão, a máquina do tempo tinha feito meu trabalho por mim. Eu tinha retornado mais de 20 anos. O meu eu daquele período tinha 14 e o encontrei no quarto lendo um gibi do Homem Aranha. O nosso preferido.

Foi estranho me observar ali da porta, mas tratei de olhar tudo ao redor com mais calma antes de chamar minha atenção. Havia uma cama de solteiro no canto esquerdo da parede, um guarda-roupa velho ao fundo e uma cômoda meio capenga à direita. Entrava uma luz forte do meio-dia pela janela. Me vi debruçado sobre a cama atento às páginas amareladas do gibi. Me lembrava bem. Tinha conseguido num sebo após a aula. Minha mãe tinha dado com muito custo alguns trocados para que eu o comprasse e passei um bom tempo na banca de rua escolhendo o que queria levar. O velho que tomava conta do sebo era do tipo ranzinza, que reclamava se alguém ficava muito tempo folheando as revistas usadas, mas eu sempre dava um jeito de olhar o que tinha dentro. Aquele gibi devia ter uns cinco ou seis anos. Devia ter passado na mão de uns dois ou três donos antes de mim. Era meu preferido.

— Nós já lemos esse mais de dez vezes!

Eu não sabia como chamar minha própria atenção e então dei duas batidas na porta antes de fazer minha voz soar. O meu eu jovem me olhou de olhos arregalados e engoliu em seco. Tinha cabelos crespos bem vastos, caindo por cima das orelhas. O nariz era grande, tinha braços finos, pernas compridas e esqueléticas. Parecia um espantalho. “Agora me lembro porque eu era tão ridicularizado na escola”.

— Quem é você?

O garoto magrelo me perguntou botando o gibi de lado, e de repente, me lembrei que não tinha ensaiado aquele diálogo por tempo suficiente em minha cabeça. Indiquei a cama, já adentrando o quarto e era como se o moleque fosse cair desmaiado a qualquer momento. “Alguém faça um sanduíche para esse garoto! ”.

Eu me sentei a seu lado e percebi que não havia forma mais simples de dizer aquilo. Fui direto:

— Eu sou o seu eu de 2020.

Era fácil perceber algumas semelhanças entre nós dois e notei que o meu eu mais magro ficou a esquadrinhar meu rosto enquanto eu apanhava o gibi sobre a cama e dava uma folheada. Marvel Especial 2. Os maiores combates entre o Homem Aranha e seu arqui-inimigo Duende Verde. A última história do compilado era “A noite em que Gwen Stacy Morreu”... minha preferida.

— Como... como você chegou aqui?

A voz era mais aguda, mais limpa. Naquela época eu alcançava notas maiores, tinha uma afinação diferenciada. Adorava imitar as vozes de desenhos animados, de atores famosos e de cantores. Sabia que não tinha mais aquela capacidade hoje em dia.

— Tenho certeza que você vai acreditar se eu disser que foi de maneira mágica.

Não houve qualquer questionamento. Eu era uma pessoa bem mais razoável naquele tempo.

Embora eu não tivesse planejado muito bem o que iria dizer ao meu eu de 14 anos, algo me induziu a conversar comigo mesmo e dizer bem francamente tudo que tinha nos acontecido nos vinte e tantos anos que nos separavam. Depois de aceitar o fato de que o sujeito calvo, barbudo e meio pançudo à sua frente era sua versão futura, o garoto começou a me fazer perguntas de maneira curiosa.

— Como é o futuro? Existem mesmo carros voadores? A ciência já inventou a cura para todas as doenças?

Eu dei uma risada sarcástica. Olhei bem no fundo daqueles olhos ainda cheios de esperança — eu nem sabia mais como era ser tão inocente — e o trouxe para a minha realidade:

— As pessoas ainda nem aprenderam a andar segurando guarda-chuva sem esbarrar umas nas outras, imagina dirigir carros voadores! — Ele me olhou incrédulo — E nesse exato momento o mundo em 2020 está tentando se recuperar de uma pandemia que em muitos países ainda está matando muita gente.

Havia agora terror em seu rosto.

— Uma pandemia? Então é muito grave!

— Sim. O vírus é chamado de Covid-19, ataca os pulmões, causa dificuldades respiratórias... seríssimo. Só no Brasil já matou mais de 190 mil pessoas.

— Mas ainda não descobriram uma cura? — Ele se ajeitou na cama sentado a meu lado. Estava bastante interessado.

— Ah, sim. Alguns laboratórios já desenvolveram vacinas que tem sido aplicadas em países da Europa e também nos Estados Unidos. Muita gente já tem sido imunizada.

— Mas e no Brasil?

Eu nem sabia como começar a explicar que por conta de uma burocracia burra e por uma falta de planejamento do Ministério da Saúde o Brasil ainda não tinha criado uma estratégia de vacinação. Também era difícil explicar que havia uma vacina sendo desenvolvida em parceria com um laboratório chinês no país, mas que ainda não tinha eficácia comprovada. E como eu ia dizer ao garoto que o próprio Presidente da República estava jogando futebol e minimizando a pandemia — mais de 10 meses depois — enquanto o governo não tinha feito nenhum pedido de vacinas a nenhum dos laboratórios que as estavam disponibilizando em outros lugares do mundo?     

— Mas como vão ficar as pessoas? Por que o Presidente não toma uma atitude?

— As pessoas continuam morrendo nos hospitais e muitas das que não estão doentes ainda, continuam se aglomerando em festas de fim de ano e comemorações com os amigos. O Presidente é o maior exemplo da falta de noção com a periculosidade da doença. Ele é seguido por grande parte dos brasileiros e para essas pessoas, tudo que ele fala é lei. O homem é um negacionista, chamou o Covid-19 de "gripezinha", diz que ninguém deve ser obrigado a se vacinar e não tem pressa nenhuma para que a população comece a ser vacinada. 

— Mas isso é terrível! — Alarmou-se meu eu de 14 anos.

— Nesse momento, em 2020, tem jogador de futebol famoso bancando festinha para mais de 500 pessoas no litoral, ex-BBB se aglomerando com outros famosos em festas clandestinas, vizinhos comemorando Natal e ano novo amontoados e até parentes indo para a praia e postando vários stories como se nada de grave estivesse acontecendo.

Havia confusão no olhar do garoto.

— O que é um “ex-BBB”? E o que significa postar stories”?

— Não se preocupe. Não é nada muito importante.

Eu tinha percebido que aquelas notícias sobre o futuro haviam tirado um pouco do brilho juvenil do rosto do garoto. De repente, eu estava me sentindo meio sádico em apagar de forma tão brusca o sorriso de alguém que ainda tinha uma vida inteira pela frente, mas precisava ser assim. Era necessário um choque de realidade. Ele precisava entender que as coisas tinham que ser diferentes e que somente com uma nova atitude eu teria, quem sabe, a chance de me tornar um adulto feliz, um adulto realizado. Aquele magrelo era a minha melhor chance.

— Mas e nós? Como estamos em 2020, em meio a pandemias, ex-BBBs e stories?

— Nada bem. — Eu dei uma suspirada. Ajeitei minha coluna dolorida e continuei — Nós estamos desempregados nesse momento, nossa última namorada nos deixou e não há qualquer perspectiva de melhora para os próximos meses. Decididamente eu não vejo solução para nossos problemas. Na verdade, eu tenho pensado muito em acabar com tudo de maneira brusca ultimamente... para tentar evitar isso é que estou aqui.

Ele ficou triste. Deu uma olhada rápida para a capa da revistinha em cima da cama. Seus olhos pararam na imagem de Gwen Stacy estatelada no chão enquanto seu namorado Homem Aranha se desespera em pé diante de seu corpo.

— Me fale um pouco sobre essa namorada... o que aconteceu?

Fiz uma pausa. Busquei uma maneira simples de começar a contar.

— Ficamos dois anos juntos. Ela era uma ótima companhia. Inteligente, divertida. Meio mimada também… mas eu gostava disso. Me deu a maior força quando eu mais precisei. Ficou sempre ao meu lado. Começamos a namorar porque um precisava do outro naquele momento. Ela também estava passando por momentos difíceis em sua vida e eu meio que servi de bote salva-vidas em meio a uma tempestade. Depois de algum tempo, toda minha baixa autoestima, minhas inseguranças e minhas paranoias começaram a cobrar o preço e aquilo me afastou dela. Ela jogou na minha cara que eu a estava prendendo, que por minha causa ela não saía mais com os amigos e que não fazia mais as coisas que gostava. Disse também que se sentia na sombra da minha ex-namorada e que eu nunca a tinha superado verdadeiramente.

— E isso é verdade?

— Não totalmente. No começo tinha sido apenas para que eu conseguisse esquecer a ex, mas depois se tornou algo real. Algo forte. Eu gostava verdadeiramente dela, mas eu tinha dificuldades para demonstrar isso. Sempre foi difícil deixar uma pessoa entrar em minha vida, ainda incomodava só de pensar na dor que era perder alguém, vê-la se afastar, ir embora sem olhar para trás... por isso, eu tinha medo em dizer que a amava e que a queria em minha vida para sempre. Eu não queria perdê-la também...   

— Mas não adiantou muito, né?

— Não. No começo do ano ela resolveu terminar tudo. Disse que “nosso ciclo tinha se encerrado” e paramos de nos falar.

— Nunca mais ouviu falar dela?

— Nos falamos algum tempo depois. Ela até me contou que estava grávida...

— Nós temos um filho? — A expressão de felicidade no rosto do garoto foi breve, mas intensa. Outra vez tive que quebrar sua expectativa.

— Não, não temos. — Havia tristeza agora em minha voz. Parecia que um nó tinha apertado minha garganta — Ela me contou algumas semanas depois que tirou o bebê. Passamos três meses juntos sem que ela tivesse coragem de me contar sobre a gravidez e decidiu sozinha que não queria ter a criança. Nós nos encontramos depois e ela me contou toda a história. Disse que um filho àquela altura da vida só a iria atrasar e que ela não tinha qualquer plano de cuidar de uma criança. Eu não tinha como não concordar com ela e embora eu não pudesse mais fazer nada, fiquei algumas semanas depois daquilo apático, sem saber o que pensar. Eu sabia que para ela um bebê não seria algo positivo naquele momento, mas me doeu muito saber que eu tinha perdido um filho — um menino — que eu nem sabia que tinha existido. De alguma forma, aquilo acabou alimentando a minha já costumeira depressão. Eu estava cada dia mais perdido.

O garoto ao meu lado não sabia bem o que dizer. Naquela época eu era extremamente tímido e retraído, era péssimo em comunicação. Eu morria de vergonha da minha aparência, era inseguro com meu corpo e não me achava bom suficiente em nada, embora tirasse boas notas na escola. O trauma de ser ridicularizado nas aulas de educação física, de ser sempre criticado e xingado de “magrelo” haviam criado uma aura de insuficiência ao meu redor, algo que me acompanhou por muitos anos... tentei colocar muito daquilo para fora nas sessões de terapia em 2018, mas havia algo dentro de mim que não podia ser compartilhado com mais ninguém, algo que nem mesmo eu conseguia exprimir e que me fez parar com as visitas ao consultório. Comecei a achar que estava fazendo a psicóloga perder seu tempo comigo e que aquilo que estava quebrado não tinha mais conserto.

— E como ela ficou depois do aborto?

— Não sei. Ela teve alguns problemas de saúde depois, mas ficou bem em seguida. Parei de acompanhá-la, mas soube que arrumou outras pessoas... deve estar fazendo tudo que dizia que não conseguia fazer ao meu lado, sabe? Sendo feliz... não a culpo.

— Então nós estamos sozinhos...?

— Sim. Aliás... como sempre.

Mais uma vez a nuvem de tristeza sobre seus olhos.

— Você e eu não vamos ser muito felizes na parte sentimental, garoto. Acostume-se com isso. Você vai ter a sua primeira namorada aos 17 anos, mas não vai ser nada que dure mais do que algumas semanas... e nada além de beijos. Você vai se iludir com algumas colegas de curso técnico, vai achar que está apaixonado, mas saiba que tudo não vai passar de devaneios seus. A mesma coisa vai acontecer na faculdade, mas aí vai aparecer uma garota que vai arrebatar você. Que vai te fazer sentir coisas que você nunca sentiu antes na vida e que vai te apresentar a um mundo cheio de amor, carinho e prazer. Muito prazer!

Ele pareceu se animar. O brilho nos olhos voltou.

— Vai durar uns dois anos… mas aí ela vai quebrar seu coração e vai te deixar sozinho outra vez. Vai parecer que seu mundo acabou — e por um tempo ele vai mesmo! — vai parecer que nada mais importa, mas um dia você vai se recuperar. Nesse período, o grande amor da sua vida vai ter se casado com outro cara e ter filhos com ele, mas você vai encontrar consolo também nos braços de outras garotas. A maioria, meras companhias para tempos tristes. Outras que vão deixar marcas até hoje impossíveis de apagar… e no final, vamos acabar sozinhos. Como sempre foi.

Comecei a ouvir um som do lado de fora da casa e percebi que minha viagem no tempo estava prestes a acabar. A máquina do tempo estava pronta para voltar para a nossa época.

— Mas e a nossa família? E nossos amigos? Tem tanta coisa que eu ainda quero saber! — Disse o garoto.

— Alguns dos nossos tios partiram dessa existência, mas nossa família está bem. Estão todos se cuidando direitinho em meio a pandemia e ninguém tem cometido excessos. Nossa mãe, nossos irmãos, nossos sobrinhos…

— E nosso pai?

— Esse sumiu no mundo há muito tempo e não temos notícias. Mas quem se importa?

O garoto pareceu espantado.

— E nossos amigos?

— Melhor impossível. A maioria constituiu família, estão bem empregados e felizes. Entre eles tem gerente, engenheiro, professor, tecnólogo... alguns eu não sei direito porque perdemos contato. O isolamento social a que eu e você vamos nos prestar é bem mais profundo, vai além daquele que a pandemia exigiu. Como eu disse… nós estamos sozinhos.

— Mas e a gente? Conseguimos nos formar? Realizamos nosso sonho de ser desenhista pelo menos?

O som do lado de fora agora era mais alto. Dava para sentir as paredes vibrando. A máquina do tempo queria partir.

— Nos formamos sim, mas jamais realizamos o sonho de ser desenhista. Esse sonho ficou para trás junto com um monte de revistas em quadrinhos que acumulamos com o tempo e que agora pegam poeira dentro de um baú velho. Mas não fique triste — fiz uma pausa o encarando — por um tempo vamos trabalhar com algo muito parecido com isso e vai ser um período muito bom da sua vida. Breve, mas bastante intenso.

Eu me levantei da cama. Já era hora de partir. Sentia que não tinha contado nada que valesse realmente a pena para o garoto, mas esperava que aquele bate-papo com meu eu do passado tivesse feito sentido, que aquele garoto pudesse mudar as coisas, que fizesse o rumo da minha vida lamentável se alterar.

— Preciso ir agora. Tem mais alguma coisa que queira saber do futuro?

Ele encarou mais uma vez o gibi sobre a cama e respondeu rapidamente:

— Nós não gostamos mais de quadrinhos? Tudo que as histórias do Homem Aranha nos ensinou ficou no passado?

Abri um sorriso.

— Nós ainda adoramos quadrinhos… mas se prepare que com o passar dos anos eles vão ficar cada dia mais caros! Tente não gastar tanto com eles. — Dei uma risada — A parte boa é que agora os personagens de gibi são populares e vão existir muitos filmes e séries sobre eles para a gente assistir.

— É sério? Vai ter um filme do Homem Aranha?

— Em 2020 já terão sido feitos pelo menos 7 filmes do Aranha!

Os olhos do garoto brilharam mais uma vez. Nada que eu o havia contado antes pareceu mexer tanto com suas emoções.

— A Marvel vai ter um estúdio de cinema próprio e vai levar um monte de super-heróis para a telona. Você vai se emocionar vendo o Hulk protegendo a Betty Ross de um helicóptero, vai chorar vendo o Capitão América gritar "Avante Vingadores" e antes disso, vai se sentir uma criança novamente quando ver o Homem Aranha se balançando pelos prédios numa tela de cinema pela primeira vez. Vai ser algo tão marcante que você nunca mais vai se esquecer!

— Caramba! — Seus olhos tinham ficado marejados de verdade. Eu tinha me esquecido como era ser tão jovem e tão cheio de vida. Aquele garoto era tudo que eu tinha esquecido como ser, e mesmo depois de contar todas as agruras que iríamos encarar nos próximos anos, ainda assim ele ficava emocionado em falar sobre seus personagens de quadrinhos preferidos. Nossa grande fuga da realidade. Nosso único refúgio.

Eu já estava próximo da porta quando mais uma pergunta chegou a meus ouvidos:

— Mas e a DC? Como serão os filmes do Superman, do Batman, do Flash?

Eu não sabia bem como responder aquilo e preferi me abster de uma resposta. Já tinha decepcionado aquele garoto demais por uma hora, ele não precisava saber a verdade.

O meu eu de 14 me acompanhou até o quintal e me viu entrar na máquina do tempo. Antes de me despedir, dei-lhe um último conselho e ele me ouviu com atenção:

— Ah... e nos próximos anos, vê se evita usar muito boné e tome menos banhos quentes. E faça mais exercícios físicos também. Daqui a 20 anos você vai me agradecer!

Uma luz amarelada nos engolfou e a última coisa que vi foi o aceno do garoto magrelo que tinha sido a minha única companhia na última hora. Eu não sei se o havia deixado muito feliz com minha visita, mas voltei para 2020 com a lembrança daquele brilho nos olhos que eu nem sabia mais que um dia havia existido. Quem sabe agora que tinha me reencontrado, eu teria o meu tão esperado final feliz. Quem sabe?

AUTOR DESCONHECIDO  

29 de dezembro de 2020

A guerra do streaming e o fim do cinema



O Covid-19 vai deixar marcas profundas em todos nós e não é de se espantar que até mesmo as grandes corporações estejam sofrendo com essa pandemia que se alastra desde meados de março de 2020 pelo mundo. Tendo em vista que as principais salas de cinema mundiais não retornarão às suas atividades normais num futuro próximo e que mesmo após a vacina ter sido sintetizada nossas vidas ainda estarão bastante tumultuadas por conta do coronavirus, a Warner decidiu dar um passo além e anunciou no começo de dezembro que TODOS seus grandes blockbusters estarão disponíveis em sua plataforma de streaming SIMULTANEAMENTE ao lançamento dos cinemas. 



O primeiro grande teste da Warner foi com o filme Mulher Maravilha 1984 que estreou nas salas de cinema e no HBO Max no dia 17. Até o presente momento, a produção dirigida por Patty Jenkins — que deveria ter estreado em abril — teve uma bilheteria mundial de US$ 85 milhões — US$ 16 milhões dos quais só nos EUA — e já foi visto por metade dos assinantes do serviço de streaming da Warner, o que obviamente é algo bem considerável.



Ainda é cedo para se dizer se a ideia de lançar grandes produções tanto no streaming quanto nos cinemas vai ajudar a salvar os cofres bilionários das empresas de entretenimento durante a pandemia, mas a Warner já anunciou que além de Mulher Maravilha 1984, todos seus grandes blockbusters previstos para 2021 também serão lançados nesse mesmo esquema. Filmes como Matrix 4, Duna, Godzilla vs Kong, Tom e Jerry (o filme) e o novo Esquadrão Suicida também constarão no catálogo da HBO Max logo que os filmes forem lançados no cinema e o mais importante: sem que o assinante precise pagar mais por isso. 



Na guerra do streaming, a Disney, assim como a Warner, tem feito experimentações com seu Disney + e foi a primeira empresa a colocar um de seus grandes blockbusters online durante a pandemia. A versão live-action da clássica animação Mulan teve lançamento exclusivo na plataforma em setembro e causou bastante burburinho por não ser uma adaptação fiel a animação de 1998. Além disso, o filme só podia ser visto em streaming se o assinante do Disney + adicionasse um valor extra ao que já pagava mensalmente — algo como se você só pudesse ver o filme no cinema se comprasse o combo com refri+pipoca — e no Brasil isso causou certo incômodo.



A Disney vai manter estratégia parecida com seus próximos lançamentos em streaming — pelo menos com aqueles que serão lançados simultaneamente com os cinemas — e já anunciou que a animação Raya and the Last Dragon será adicionada ao catálogo a partir de março de 2021, com um acréscimo de US$ 30 (R$ 150,00) à mensalidade para quem quiser ver na estreia em casa, em vez de ir ao cinema. 



A Disney ainda não se pronunciou quanto à sua estratégia para enfrentar a pandemia ou sobre os filmes que estão na geladeira por enquanto — como Viúva Negra, por exemplo —, mas nas últimas semanas anunciou 10 novas séries dentro do Universo Marvel dos cinemas e mais 10 sobre Star Wars, o que nos leva a crer que seu foco agora vai ser em seu serviço de streaming e não tanto nas grandes produções hollywoodianas. 



Com a normalização dos serviços de streaming, com lançamentos exclusivos sendo feitos diretamente para essas plataformas ao longo de todo o próximo ano, qual será o futuro das salas de exibição e dos grandes operadores de cinema?  

Falando agora particularmente, se tem uma coisa que eu gosto é de ficar em casa curtindo um filminho ou uma série no som bacanudo do meu home theater, mas mesmo com a facilidade que os serviços de streaming proporcionam —incluindo aí os preços mais baixos em comparação com todo o rolê que inclui uma "simples" ida ao cinema — na minha visão, nada se compara à experiência de ver um filme na telona.



Em minha infância eu não tive muitas oportunidades de ir ao cinema — toque a música triste do Hulk em sua cabeça. O primeiro filme que assisti em tela grande foi O Rei Leão (1994) e só consegui ir de novo no final do século para assistir Star Wars - Episódio I e o Fim dos Dias com o Schwarzenegger. Já no século XXI, quando consegui ir assistir o Homem Aranha (2002) no cinema, a experiência foi inacreditável e tenho lembranças até hoje da sensação incomparável de estar em uma sala confortável, com ar condicionado, ouvindo a reação das pessoas ao meu redor com as cenas impactantes e o cheiro da pipoca no nariz. Acho todo o clima do cinema algo maravilhoso até hoje e a menos que eu ganhe na Mega Sena e possa construir uma sala de cinema em casa, nunca vou poder reproduzir toda essa experiência, por melhor que seja a banda de internet ou melhor que seja o áudio de meu home theater

Você é velho, Rodman! Ninguém gosta mais de cinema lotado, gente levantando no meio do filme, falando alto, usando o celular! O esquema é streaming! 

Tô ligado, jovem padawan!

Eu mencionei antes a sensação de poder ouvir a reação das pessoas ao meu redor ao filme, mas até mesmo quando a sala do cinema está quase vazia AINDA assim vale a experiência. Em 2019 posso dizer que não encarei mais do que duas ou três sessões cheias em cinema e a grande maioria foi na tranquilidade. Ar condicionado no talo, som mais alto que a mastigação da pipoca e uma tela gigante em minha frente me fazendo esquecer dos problemas por duas horas.



Eu tenho quase um caso de amor com o cinema e até mesmo os filmes mais horríveis parecem ganhar uma aura diferenciada na projeção. É algo difícil de explicar. 

A explosão dos serviços de streaming vai trazer uma comodidade que muita gente sempre quis ter de ver seus filmes preferidos em casa, esticadão no sofá ou na cama, sem precisar enfrentar filas, sem ter que procurar vagas de estacionamento ou do incômodo que é ter gente falando alto enquanto o filme está sendo projetado. No entanto, não há como negar que daqui a pouco tempo, pagar uma sessão de cinema não vai ser quase nada comparado aos valores acumulados que vão acarretar assinar três, quatro serviços diferentes para se ter o privilégio de ver um filme em seu lançamento, sem falar nas taxas extras (não é mesmo dona Disney?).  

Você pode estar lendo esse artigo em seu celular com uma banda de fibra ótica de 200 milhões de megas, mas é importante lembrar que tem lugar no Brasil que mal chega 1 Mb de velocidade, além do que a interrupção de banda causa um desconforto inacreditável no meio de um filme ou de um episódio de série. Para quem não tem uma internet decente em casa ou sequer pode se dar ao luxo de assinar Netflix, Amazon Prime Vídeo, Globoplay, Disney + e a vindoura HBO Max — ainda sem data de estreia no país da antivacina — todas de uma vez, uma sessão de quarta-feira a R$ 10,00 no cinema viria muito bem a calhar!

Por enquanto, ainda não está declarado o fim oficial dos cinemas, que continuarão moribundos no próximo ano ainda sob efeito da pandemia do Covid-19, mas se você tem algum bom senso e preza pela vida de seus entes queridos — pelo menos aqueles que não são bolsominions — não vai ser tão cedo que iremos rever cenas como o cinema levantando de emoção enquanto o Capitão América empunha o Mjolnir em Vingadores - Ultimato.

Fala a verdade... nenhum serviço de streaming jamais vai proporcionar a emoção de ver uma cena como aquela em meio a uma galera tão emocionada e vibrante quanto você. Esse tipo de coisa nunca mais vai acontecer. Uma pena.

Estamos ficando velhos, Magneto!

P.S. - Eu não sou muito bom de matemática, mas tendo em vista que você seja um entusiasta dos serviços de streaming e não queira ficar para trás nas rodas de conversas sobre os filmes e séries mais comentados da semana, você teria que desembolsar os já costumeiros R$ 32,90 da Netflix — afinal, você não quer perder Os Cambitos da Rainha e nem a última temporada de La Casa de Papel! —, os R$ 9,90 da Amazon Prime, os R$ 37,90 da Disney + — pra deixar o Mickey ainda mais rico e também para ver o Baby Yoda — e se quiser aproveitar o combo Disney + e o Globoplay, R$ 43,90. Dá para ver o Faustão ao vivo no domingo, conferir a excelente série Desalma e ainda rever o Pescador Parrudo em Kubanacan. Como disse, sou péssimo em contas, mas chutando por alto, se você quiser mesmo ser O entusiasta do streaming — e sem contar com a sua conta no Spotify ou no Deezer — você vai ter que desembolsar o valor módico de R$ 86,70 mensais... ou algo próximo a isso. Se você tiver namorada (o), é mais ou menos o que gasta a uma ida com ela (o) ao cinema, mas sem as experiências já comentadas anteriormente.

P.S. 2 - Rod Rodman ainda não assinou o Disney +... quem sabe ele se decida quando chegarem as séries da Marvel por lá! 

NAMASTE!   

21 de dezembro de 2020

A melhor série animada dos X-Men

A série animada dos X-Men (X-Men: The Animated Series) estreou no ano de 1992 nos Estados Unidos e foi concluída 5 temporadas depois em 1997. Transmitida pelo canal Fox Kids e tendo sido desenvolvida pela Saban — a mesma produtora que deu vida aos Power Ranges —, a animação foi um marco importante também no Brasil, uma vez que serviu como porta de entrada para muita gente que nunca tinha ouvido falar dos mutantes da Marvel, ou para aqueles que, como eu, tinham poucas referências nos quadrinhos.

Aqui onde a Terra é plana e onde quem toma vacina vira jacaré, o desenho foi transmitido pela Globo na TV Colosso por volta de 1994 e se tornou febre muito rapidamente entre a molecada. Eu já lia gibis há algum tempo quando X-Men estreou na TV, mas confesso que não tinha base quase nenhuma sobre os mutantes criados em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby. Dos personagens que protagonizavam o desenho, eu já tinha visto o Ciclope e o Wolverine*, mas muito por alto numa das capas das primeiras Guerras Secretas, e o restante eu desconhecia completamente. 



Me lembro que na época, eu só tinha uma revista dos X-Men em casa, que meu irmão tinha trazido num dia qualquer — eu comecei a colecionar quadrinhos por causa dele! —, e mesmo assim, ela não era uma das minhas preferidas, já que mostrava o final de um arco que eu não entendia nada e apresentava personagens das quais eu tinha pouco interesse. A edição em questão era a de nº 24 da Editora Abril mostrando o julgamento do Magneto, mas eu ignorava completamente tudo que estava acontecendo ali dentro. Eu era muito fã do Homem Aranha e além disso, eu lia bastante coisa do Capitão América, do Hulk ou do Superman pela DC.



Por causa do desenho, de repente, todo mundo virou fã dos X-Men, até mesmo quem nunca tinha lido um gibi de super-herói na vida! A molecada ficava repetindo os bordões dos personagens na escola e todo mundo pirava com o jeito "violentão" do Wolverine, o que ajudou a popularizar o personagem por aqui também. Como ninguém conhecia porra nenhuma dos mutantes, tudo que mostravam no desenho se tornava automaticamente verdade e eu passei muito tempo achando que o Morfo era mesmo um personagem regular do grupo ou que o Dia de Um Futuro Esquecido tinha a participação do Bishop!



Eu não sei se foi por influência de alguém que comentou nas aulas ou se eu acabei assistindo por conta própria numa manhã qualquer, mas me lembro bem que a primeira vez que percebi que estava assistindo alguma coisa relativa a personagens de quadrinhos — lembrando que eu não conhecia muita coisa de X-Men — foi ao bater o olho na máscara do Wolverine dentro de uma maleta enquanto o episódio 6 da primeira temporada rolava ("Vingança Gelada"). Eu não tinha visto a abertura do desenho e peguei o trem literalmente andando, mas a partir dali, bateu um sinal em minha cabeça de que aquilo era muito bom e eu comecei a acompanhar a série.



É bom lembrar que nos anos 90 qualquer coisa baseada em quadrinhos em outras mídias era algo muito raro de acontecer, o que ajudou a consolidar o sucesso dos X-Men entre os brasileiros. Até então, a gente vivia das reprises que passavam na Sessão da Tarde de Batman (de 1989), o terrível Superman IV - Em Busca da Paz e de outros dois ou três filmes da DC. Da Marvel a gente tinha a série antiga do Hulk — aquela do Lou Ferrigno — e os filmes medonhos do Capitão América que passavam no SBT, mas desenho que rivalizasse com a animação do Batman não havia. 

Como a atualização dos episódios demorava para acontecer, a primeira e a segunda temporada de X-Men foram incansavelmente reprisadas nas manhãs da TV Colosso, a ponto de eu ter as falas do Wolverine praticamente decoradas na memória. Eu lembro que eu tinha aula de Educação Física duas vezes na semana na escola de manhã e nesses dois dias eu tinha que correr para casa para não perder os episódios. 

Outra curiosidade de que me lembro acerca do desenho, é que certa vez a minha mãe falou que era para eu parar de assistir porque "era violento demais". Ela tinha escutado alguns diálogos enquanto varria o quintal e não tinha curtido muito. Não sei bem o que ela ouviu que não gostou, mas o episódio era "A Bela e a Fera" (o episódio 10 da 2ª temporada, "Beauty & Beast"), onde o Wolverine entrava disfarçado no covil dos Amigos da Humanidade e confrontava Graydon Creed, o filho de Victor Creed, o Dentes-de-Sabre.    



Esse episódio era um dos que eu menos gostava na época — talvez porque não tinha tanta ação —, mas reassistindo, percebi que ele é um dos melhores na abordagem de temas como preconceito racial, intolerância ao que é diferente e aceitação. Nele, uma garota cega chamada Carly busca um tratamento experimental criado pelo doutor Hank McCoy para voltar a enxergar, e os dois acabam se apaixonando, mesmo sem ela nunca ter visto a real aparência de Hank, em sua versão azul peluda. Enquanto os Amigos da Humanidade — que é um tipo de grupo radical como os supremacistas brancos, só que contra os mutantes em vez de negros e judeus — tocam o terror buscando mais aliados para sua causa racista, os caras colocam em risco a vida da própria Carly, que precisa ser defendida por Wolverine e o Fera. 



Ainda no mesmo episódio, o pai de Carly é um véio reaça preconceituoso radical que não aceita que sua filha seja tratada por um "anormal mutante" e Hank acaba entrando em conflito consigo mesmo por ter a aparência de um gigante peludo que assusta as pessoas ditas "comuns". Eu não entendia na época que um simples desenho animado podia falar de questões tão importantes de maneira metafórica, mas vendo com os olhos de hoje, é possível traçar diversos paralelos com a realidade que enfrentamos atualmente, em que os mesmos caras que assistiam esse desenho na TV durante a infância e que se diziam fãs dos X-men, criam canais de Youtube ou contas em redes sociais para destilar seu ódio a tudo que é "diferente" ou "foge dos padrões sociais mais aceitos". A galera não aprendeu nada.    

Depois de reprisar muito os episódios — algo que era comum na época quando algum desenho ou série live-action fazia sucesso — eu lembro que assisti muito pouco da terceira temporada na TV Colosso e confesso que nem faço ideia se a quarta e a quinta chegaram a ser transmitidas no programa infantil. O sucesso de X-Men logo começou a dividir espaço com a chegada dos Power Rangers na grade de programação nessa mesma época — ambos sendo televisionados próximo ao horário do almoço — e só muito tempo depois é que a série animada do Homem Aranha chegou para suprir a falta que fazia os mutantes quando o desenho acabou.



Não tem como dizer que X-Men não foi um boom na vida das crianças e adolescentes da época e que serviu para fazer muita gente mergulhar de cabeça no mundo das drogas dos quadrinhos, que na época, estavam produzindo os quinhentos mil títulos dos mutantes e abarrotando os cofres da Marvel. Depois do desenho, eu comecei a correr atrás dos gibis dos X-Men publicados no Brasil pela Editora Abril e comecei a percorrer sebos da cidade para recuperar o tempo perdido. Logo vieram as edições com os roteiros de Chris Claremont e os desenhos do Jim Lee — que fizeram a febre X-Men aumentar em todo o mundo — e além da edição em formatinho e do formato americano lançado mensalmente, ainda tinham os especiais, naquelas versões mais "gordinhas" com 100 páginas. Era muito gibi pra pouco dinheiro, mas a gente tentava colecionar tudo e ler o que os amigos emprestavam. 

Adaptações levadas a sério

Um dos principais atrativos da série animada dos X-Men era a preocupação dos roteiristas em adaptar as várias sagas que os Filhos do Átomo tinham nos gibis para a TV, e até hoje, muitas das melhores transposições de mídias já feitas dos mutantes da Marvel constam nos episódios das cinco temporadas do desenho.



Como eu disse antes, meus conhecimentos de X-Men eram parcos naquele período e muitas das grandes e mais famosas sagas dos mutantes eu vi primeiro no desenho para só muito mais tarde poder ler nos gibis. Eu nunca tinha visto "A Saga da Fênix" escrita por Chris Claremont e desenhada por Dave Cockrum e John Byrne, e os episódios de 3 a 7 da terceira temporada resumem de maneira muito competente o que acontece nos gibis, com uma ou outra alteração para deixar tudo mais "clean" para as crianças entenderem. 



As participações especiais de personagens do mundo dos X-Men também eram muito comuns no desenho e caras como Cable, Bishop, Maverick, Sauron e Sr. Sinistro eu vi pela primeira vez na TV.



Outra coisa bacana que acontecia no desenho e que fazia o meu lado nerd vibrar eram as simples menções ou aparições-relâmpagos de personagens mais conhecidos dos quadrinhos como o Homem Aranha, o Doutor Estranho e o Thor. Nesse quesito, a Saga da Fênix e a Fênix Negra é um desbunde, já que mostra quase todos eles de relance enquanto Jean Grey dominada pelo espírito Ragatanga pela Fênix começa a usar seus poderes. 



Cara! Não havia replay, não tinha como congelar a imagem para ver com mais detalhes depois como os serviços de streaming permitem atualmente e eu lembro que eu só dava aquele salto no sofá enquanto a voz na minha mente gritava "OLHA LÁ O HOMEM ARANHA, CARA!" por um frame que não durava nem dois segundos.



Eu tinha uma lembrança muito vaga de ter visto o desenho do "Homem Aranha e seus Incríveis Amigos" na TV preto e branco de casa, por isso, ver o meu personagem favorito, mesmo que por um microssegundo na tela, era algo que me empolgava bastante!

Algo muito semelhante acontece no episódio "Mojovisão" (o 11º da segunda temporada) em que durante a introdução do Longshot aparece a Psylocke num frame de milésimos de segundo sei lá porque! A ninja da adaga psíquica era figura importantíssima nas HQs na época e não tê-la regularmente no desenho era algo que muita gente questionava. Além desse frame de segundos, ela volta a aparecer só na quarta temporada, num dos episódios da saga "Acima do Bem e do Mal", e mesmo assim é sem qualquer destaque, apenas como mais uma participação especial. 



Quem prestou a atenção também deve ter visto o Deadpool de relance em uma das transformações do Morfo na segunda temporada (episódio 3, "O que for preciso") ou como uma memória residual do Wolverine, que estava sendo atacado psiquicamente pelo "Lado Sombrio" do Professor Xavier na terceira temporada (episódio 4, "A Saga da Fênix - Parte 2")



A fidelidade aos quadrinhos, as participações especiais e o ritmo intenso dos episódios, que apesar de não mostrar tanta violência quanto gostaríamos, fizeram de X-Men: The Animated Series um dos produtos mais felizes dos mutantes em outra mídia, e lembro com saudades dessa época. 



Até hoje o episódio "Uma História da Vampira" ("A Rogue's Tale", o 9º da segunda temporada) é o meu preferido de todos das cinco temporadas, em grande parte porque adaptava uma das minhas histórias preferidas entre X-Men e Vingadores — publicada nos EUA em Avengers Annual #10 escrita por Chris Claremont e desenhada por Michael Golden, mostrando a origem da Vampira — e por causa da aparição da Miss Marvel — que na dublagem chega a ser chamada de "Dona" Marvel —, que eu conhecia das histórias dos Vingadores. Sempre que reprisava, eu dava um jeito de ver e é bom até hoje.  

Problemas na animação

Como qualquer produto de época, é bom lembrar que a qualidade técnica de X-Men: The Animated Series dos anos 90 não deve ser questionada atualmente como se o desenho tivesse que ser perfeito em comparação aos padrões absurdos disponíveis hoje em dia. X-Men Evolution e Wolverine e os X-men, por exemplo, são muito superiores tecnicamente ao clássico desenho noventista, o que nem de longe desmerece o sucesso que a animação fez, trazendo aos espectadores tudo que foi comentado no tópico acima. 



O próprio Evolution tem sim seu charme, apesar de ignorar quase que completamente tudo que acontecia nos quadrinhos — criando um universo próprio para o desenho — e um pouco da fidelidade aos gibis tentou ser reproduzida em Wolverine e os X-Men, embora de maneira mais desastrada por tentar pegar o hype criado pelos filmes da Fox e colocar o Logan como o líder dos mutantes.

X-Men: The Animated Series apresentava problemas de colorização, animação e até de continuísmo que não eram percebidos facilmente pelo olhar de uma criança, mas que atualmente, com mais experiência, chegam a gritar aos olhos. Eu revi boa parte dos episódios antes de escrever esse post e coisas bobas como jaquetas e luvas que somem de uma cena para outra chegam a ser um exercício muito bom de observação. Cansei de contar quantas vezes as "costeletas" da máscara do Wolverine apareciam amarelas em vez de pretas, ou quantas vezes as luvas do Ciclope eram colorizadas com o tom de sua pele, mesmo quando ele estava com o uniforme completo. 

Outra coisa que saltava aos ouvidos, eram as traduções dos nomes de alguns personagens na versão dublada pelo — finado — estúdio Herbert Richards, que ora seguia a tradução literal e outras preferia manter como o original, em inglês. Ao longo das três primeiras temporadas vi o Justiceiro (Punisher) ser chamado de "o Assassino" — o personagem é mostrado na caixa de um jogo de videogame na primeira temporada —, o Mercúrio (Quicksilver) ser chamado de "Raio de Prata" e ao mesmo tempo — e no mesmo episódio — o Havok (que no Brasil é conhecido como Destrutor) e a Wolfsbane (a Lupina) do X-Factor não terem seus nomes traduzidos como nos quadrinhos, sendo chamados por seus títulos em inglês . 



Era muito comum também, às vezes, o adamantium ser chamado de "diamantino" ou "adamantino" na dublagem e dava a impressão que os dubladores não conversavam entre si ou com seu diretor de dublagem para definir como diabos se pronunciava certos nomes. Até o Ciclope eu ouvi ser chamado de "Cyclops", como a versão em inglês e essas nuances aconteciam muitas vezes durante o mesmo episódio, o que, é claro, não diminuía em nada a qualidade dos capítulos. 

Dublagem

Outra característica muito marcante da animação dos X-Men dos anos 90 foi sua dublagem, que sem querer, acabou imortalizando certas vozes a seus respectivos personagens. Todos os grandes dubladores brasileiros que escreveram sua história nos anos 80 — e até antes disso! — fizeram parte do elenco do desenho, e alguns foram tão icônicos, que posteriormente acabaram repetindo seus papeis nos filmes dos mutantes, a partir dos anos 2000. 



Como na época não tínhamos acesso à versão original dos episódios, a dublagem era nosso principal meio de ligação com os personagens e a mudança de algumas vozes de uma temporada para outra, às vezes, causava certo desconforto. Da primeira temporada para a segunda, por exemplo, as vozes do Ciclope e da Vampira foram alteradas e enquanto o dublador Dário de Castro assumia a voz do líder da equipe no lugar de Nilton Valério — ator falecido em 2007 que dublou o personagem na primeira temporada —, tivemos a Fernanda Baronne Fernandes substituindo a Taciana Fonseca como a Vampira. Fonseca, inclusive, se aposentou da dublagem pouco depois do sucesso dos X-Men e não a ouvimos mais por aí desde então.



Fernanda Baronne acabou conquistando seu lugar como a Vampira e hoje em dia a sua voz é a que mais ocupa o imaginário popular, já que ela também dublou a atriz Anna Paquin nos filmes dos X-Men e voltou à personagem na dublagem de X-Men Evolution. Parte da minha paixão pela personagem naquela época se dava por conta da voz rouca  e sensual da Fernanda, e eu comentei um pouco disso num post sobre meus dubladores favoritos



Feras da dublagem obrigatoriamente também fizeram participações no desenho dos X-Men e uma delas foi o mestre Orlando Drummond, que deu voz — entre outros personagens como o Black Tom Cassidy — ao Dentes-de-Sabre / Victor Creed. Além de apresentar o desenho como narrador — chamando o grupo de "xismen" até boa parte da terceira temporada, jeito aliás, que todo mundo no Brasil se referia aos heróis antes do desenho! — o icônico Márcio Seixas — antes do dossiê polêmico! — também deu voz aos personagens Anfíbio da Terra Selvagem e ao Eric, o Vermelho (ou Escarlate) da Guarda Imperial Shi'ar.       



O José Santa Cruz foi o Magneto tanto nas primeiras temporadas da animação quanto por trás do ator Ian McKellen nos filmes dos X-Men, e o saudoso Darcy Pedrosa — falecido em 1999 e que no Brasil ficou muito conhecido por dublar tanto o Coringa de Jack Nicholson no filme dos anos 80 quanto o da animação do Batman — foi a primeira voz do Gladiador da Guarda Imperial Shi'ar, quando ele chega à Terra para confrontar os X-Men e acaba jogando o Fanático** longe com uma facilidade impressionante no início da Saga da Fênix.



Três vozes além de Fernanda Baronne e José Santa Cruz foram mantidas nos filmes dos X-Men, para alegria dos fãs da animação. Isaac Schneider foi a voz do Professor Xavier em ambas as produções, Sylvia Salustti dublou tanto a Jean Grey do desenho quanto a atriz Famke Janssen no live-action e o icônico Isaac Bardavid foi a voz mais marcante do Wolverine nas animações, tendo a oportunidade de dublar também Hugh Jackman em todas as suas aparições como Logan nos filmes da Fox



Na terceira temporada, a partir do episódio 11, Bardavid é substituído pelo igualmente fantástico Francisco José, que por aqui, também foi a voz do Panthro de Thundercats — a primeira série animada — e do Lex Luthor em Liga da Justiça Sem Limites



O Gambit ficou bastante marcado pela voz de Eduardo Dascar, que de vez em quando tinha que arriscar alguns termos em francês ditos pelo personagem, e a jovem Jubileu tinha a mesma voz da Arlequina da animação do Batman, com a dubladora Iara Riça desempenhando um trabalho excelente com a caçula da equipe. Riça ainda voltou ao universo dos X-Men em X-Men Evolution, só que desta vez ela dava a voz da Jean Grey adolescente. 



Completando o time do elenco principal, Leonel Abrantes — ator que faleceu em fevereiro de 2020 — deu voz ao Fera / Hank McCoy até o episódio 10 da terceira temporada — e também ao ator Kelsey Grammer em X-Men - The Last Stand —, quando foi substituído por Jorge Vasconcellos a partir de então. A Tempestade / Ororo foi dublada — até onde eu me lembro — pela mesma dubladora até o fim da série, a incrível Jane Kelly, que também voltou à personagem na trilogia dos X-Men dos cinemas, dando voz a atriz Halle Berry. Kelly nos deixou em 2011 aos 62 anos. 



Essa fidelidade de vozes transportadas dos desenhos para o cinema foi um ponto muito importante na dublagem brasileira quando os primeiros filmes da Marvel começaram a surgir, e os fãs tiveram a chance de ser agraciados por algo que, assim como o próprio desenho, fez parte da nossa infância. As vozes dos dubladores da animação estavam em nossa mente há muito tempo e até mesmo quando a Fox começou a ferrar com tudo na telona, ainda assim valia a pena ver os filmes por conta deles. 

Além de matar as saudades dessa animação que foi a base de muita gente para o universo dos X-Men nos anos 90, esse post também é uma homenagem aos grandes dubladores que fizeram parte desse sucesso. É bem certo que sem eles, o desenho jamais teria tido o mesmo encanto que teve e se mantido em nossas memórias por tanto tempo.

A primeira temporada da série animada está no catálogo do serviço de streaming Disney + e para quem nunca viu, vale a pena a conferida. Apesar dos defeitos, X-Men mantém uma aura muito boa de uma época em que os mutantes da Marvel eram os personagens mais importantes dos quadrinhos.

P.S. -  *Vale lembrar que na edição nacional de Guerras Secretas lançada no Brasil pela Editora Abril, alguns personagens foram limados tanto da capa quanto de seu conteúdo por, na época, ainda não terem sido apresentados nas histórias mensais, o que causaria confusão nos leitores. A Vampira foi uma dessas personagens que foram tiradas da capa, e por isso, eu não a conhecia nem de vista quando o desenho dos X-Men foi lançado. Na capa, ainda aparecem a Tempestade — com seu visual moicano, portanto irreconhecível para mim — e o Noturno, que não é um personagem regular do desenho, só aparecendo pela primeira vez na terceira temporada. 

A capa brasileira de Guerras Secretas eliminou alguns personagens mutantes como a Vampira, o Noturno e a Tempestade


P.S. 2 - **Nunca houve um consenso quanto aos nomes originais dos personagens em inglês e suas traduções para o português no Brasil, o que tornou confuso o entendimento de alguns diálogos ao longo dos mais de 70 episódios da série dos X-Men. Muitos dos nomes nacionais dos personagens Marvel e DC nos quadrinhos surgiram nas redações das editoras Ebal e Abril nas republicações brasileiras, portanto, o estúdio Herbert Richers não parecia ter a obrigação de seguir o que era usado nos gibis em português. Mesmo assim, às vezes, os nomes coincidiam, como foi o caso do Juggernaut, que na dublagem da primeira temporada foi chamado de "Fanático" como era nos gibis da Abril. A partir da segunda temporada, seu nome em inglês volta a ser usado e é difícil saber o que realmente determinava algumas alterações, enquanto outras eram ignoradas. 

Que bom que pelo menos ele não foi chamado de "O Jaganata", não é mesmo?

Jaganata, forma como o nome do personagem Juggernaut foi traduzido pela editora Bloch no Brasil

P.S. 3 - E fã que era fã de verdade tinha que ter o álbum de figurinhas do desenho! O meu está incompleto até hoje, mas gastei uns bons trocados colecionando figurinhas da primeira temporada! 


 
NAMASTE!

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