Durante todo o filme temos a impressão “de já ter visto isso em algum lugar” com relação aos fatos mostrados, e ficção se mistura muito facilmente com a realidade. José Padilha não criou uma história tirada do nada e nem tampouco usou de argumentos puramente ficcionais para compor seu filme. O tempo todo nós somos espetados por fatos reais disfarçados de “faz de conta” e desde a primeira cena (a rebelião em Bangu I) o espectador começa a se antenar sobre o evento do “baseado em fatos reais” estar mais óbvio do que se previa. A corrupção de carcereiros e de policias que fazem vista grossa para a “fuga” de um presidiário de altíssima periculosidade chamado Beirada (na tela interpretado por Seu Jorge) e do desenrolar dos fatos que levam à expulsão do Capitão Nascimento do BOPE é apenas a ponta do fio de um novelo muito maior que vai se desenrolando no decorrer do filme, e para os mais atentos, qualquer semelhança com a fuga de Fernandinho Beira-Mar do Departamento Estadual de Operações Especiais (Deoesp), em Belo Horizonte em 1997 nesse caso, não é mera coincidência (mais detalhes aqui e aqui).
Para quem acompanha noticiários independentemente de qual mídia se faz isso (muito do que vemos e lemos diariamente é manipulado) sabe que a Polícia tem sua banda podre, e isso não é só no Rio de Janeiro, onde se concentra a história de Tropa de Elite 2. Embora isso seja algo até de grande notoriedade, ainda é chocante ver como isso ocorre de forma tão descarada e arbitrária mesmo que em uma obra ficcional. Somos levados a acreditar desde pequenos que há o herói e o vilão, mas a realidade nem sempre nos permite distinguir quem é quem. Muitas vezes o que deveria ser o herói age como vilão e para alguns os vilões é que são os verdadeiros heróis (como nas comunidades que são bancadas por traficantes). Se o cara que o resto da sociedade considera bandido é o mesmo que lhe dá comida e segurança então o que ele será para você? Duvido que a resposta seja vilão. Da mesma forma, aquele que deveria lhe dar segurança age de maneira inescrupulosa, visando seu lucro pessoal, e a palavra “herói” está muito longe de servir para descrevê-lo. Essa é a nossa realidade.
No primeiro Tropa de Elite nos vemos torcendo pelo Capitão Nascimento e seu BOPE, que sobe nas comunidades (não se pode mais dizer favela) para fazer “justiça”. Vibramos com os tapas na cara (em sentido amplo) dos estudantes (playboyzinhos maconheiros) que alimentam o tráfico de drogas e com o enquadramento dos próprios donos de bocas de fumo. Nos sentimos de alma lava a cada “cadê o Baiano” e “você é um merda” que o Capitão Nascimento dispara enquanto impõe sua forma de fazer aquilo que considera certo (e nós também), torcemos para que ele consiga treinar seu substituto e abrimos um largo sorriso para o desfecho da história (um tiro de calibre doze na cara do Baiano) por mais violento que ele possa parecer. É intrínseco, quase natural o efeito que Tropa de Elite causa àqueles que há tempos clamam por justiça num país onde a Lei só funciona para poucos, mas na sua sequencia, descobrimos juntos com o agora Coronel Nascimento, que os inimigos são outros e que os traficantes são apenas marionetes controladas por mãos muito maiores, numa escala muito mais alta de poder, e o efeito no espectador é o mesmo que Nascimento sente em cena: vazio. A solução está muito mais longe de ser encontrada, e tapas, sacos e cabos de vassoura já não são mais suficientes.
Ainda não li nenhuma crítica ao filme, não sei qual a opinião das pessoas sobre o que viram na tela exceto os tradicionais “muito louco esse filme!”, “da hora!”. Eu vi um filme muito mais maduro que o primeiro, muito mais mordaz e ousado em pleno período eleitoral (e vem o segundo turno), e minha opinião sobre ele é muito particular. Me senti perdido enquanto assistia não sabendo exatamente o que pensar, e acho que a intenção de Padilha era mesmo essa, colocar seu espectador para pensar nesses temas para a qual ninguém dá a mínima cotidianamente. Percebi o crescente que o filme permite desde a rebelião em Bangu I até o desfecho da história, e terminei com uma sensação de saciedade por ver na tela o que eu sempre pensei mais nunca consegui exteriorizar. O cenário brasileiro é mais podre que se pensa, há um motivo para que existam ainda, em pleno século XXI as favelas (FAVELAS, mesmo), há um motivo para que nenhum governo seja A ou B NÃO apresente projetos para melhorar a situação das comunidades e o tráfico de drogas em suas campanhas políticas medíocres. Há um motivo para que o governo NÃO tome ações cabíveis para que o tráfico seja combatido ferrenhamente e que não se deixe acontecer no Brasil o que se tornou a Colômbia, que hoje é um país sustentado pelo tráfico. Não é só no Rio de Janeiro que isso acontece. Na minha rua, na sua rua nesse momento pode haver uma boca de fumo sustentada por um sistema falido e quase ninguém se dá conta. Os que se dão ao luxo de questionar o porquê disso, tentam recorrer ao único meio de “justiça” que lhes é permitido por lei, mas enquanto não há tiros sendo disparados ou exposição demasiada de armas de fogo a resposta é sempre a mesma: “Desculpe, não podemos fazer nada”.
Aguardo ansiosamente para que algum defensor dos direitos humanos comece a questionar a “história fictícia” de Tropa de Elite 2 chamando-a de fascista e mentirosa, porque é sempre bom ouvir o outro lado da história e saber o que ele tem a dizer. Patrocinado pela Globo Filmes, Tropa 2 certamente será chamado de “eleitoreiro”, “marketing político” e certamente desagradará alguns ditos cultos de esquerda, mesmo que a visão política exibida no filme não favoreça em nenhum momento (a meu ver) partido A ou partido B. A questão da segurança pública devia sim estar sendo discutida amplamente por partidos A e B em plena campanha presidencial, mas o que vemos, como comentei no post Política para quem precisa de Política, é um festival de ataques baixos à moral alheia e como pano de fundo o mar de rosas que está o Brasil há oito anos ou promessas sem sentido, sem bases sólidas. Eu não usaria muito bem o termo “rosas” para adjetivar o mar em que estamos mergulhados.
Pode parecer exagero, mas Tropa de Elite 2 me serviu como um alerta de que o mundo em que estou vivendo é mais caótico do que eu supunha, e me deixou ainda mais alquebrado com relação a meus sonhos, hoje utópicos, de ver um Brasil sem corrupção, ou pelo menos onde ela é combatida. Mensalões, dinheiro na cueca, assaltos na Casa Civil já não fazem mais o povo reagir, tudo está muito bem oculto por trás de um “país onde o povo pode comprar mais” ou por benefícios dados de graça. Não há porque questionar um governo que te dá o pão e o circo, mesmo que ele seja conivente com a corrupção que acontece a olhos vistos, então a solução é fechar os olhos ou internalizar aquilo, jogando a culpa no partido de oposição. Os meios de comunicação que trazem esses escândalos à tona são de direita e apoiam um partido declaradamente? Sim. Mas se não há corrupção ou se ela existe e não é combatida, por que então sempre alguém renega o cargo ou é expulso do mesmo quando o lixo vem à tona? Bom seria se num país onde o pão e circo já calam a maior parte dos beneficiados a comunicação também se calasse, o que garantiria um controle 100% funcional do sistema conseguido com o silêncio ditatorial, aí sim nós estaríamos vivendo no País das Maravilhas. Quem sabe isso não ocorra nos próximos quatro (oito, doze, para sempre) anos. Dia 31 saberemos. Como bem disse José Padilha no dia do lançamento do filme “infelizmente o Brasil vai continuar o mesmo depois do filme” e eu concordo plenamente. Interpretação é para poucos, e nós não temos um Capitão Nascimento de verdade com colhões para jogar a verdade na cara do povo e dizer que vale a pena ser incorruptível.
Produção e Atuações
Pra quem curte cinema iraniano (indies e descoladinhos) uma má notícia: Tropa de Elite 2 tem uma produção caprichada, digna de cinema hollywoodiano o que garante ainda mais veracidade e dinamismo nas cenas de ação. Por alguns instantes esquecemos que o filme é uma produção brasileira (daquelas que vivemos colocando defeitos por não se parecerem com as americanas) e mergulhamos fundo nas perseguições de carro, nos efeitos muito bem executados de tiros acertando o alvo e da sonoplastia de freadas e disparos de metralhadora. Claro que não é o fato de Tropa de Elite ter uma produção bem próxima dos filmes estrangeiros a razão de seu sucesso, isso só vem a colaborar com o roteiro muito bem executado. O sucesso se deve ao fato, justamente do tema do filme ser bem brasileiro e a identificação que isso causa ao público, mas a execução caprichada fruto dos muitos milhões de Reais investidos torna o filme muito mais digno de elogios.
Sobre as atuações é obrigatório citar o quão talentoso é o baiano Wagner Moura e como o cara manda bem em todas as facetas do Capitão (eterno) Nascimento. Cada cena é um show de interpretação, ele vai do drama ao inconformismo sem que a gente perceba que se trata de algo ficcional e o faz com extrema competência. Confesso que eu tremi na cadeira quando ele manda que o Mathias (André Ramiro) baixe o tom para falar com ele numa determinada cena de conflito entre os personagens de ambos. Me senti acuado como se fosse eu à receber a bronca tal grande é o poder que Moura passa em seu Capitão Nascimento. Nota 10 para o ator e vida longa a sua carreira de produtor.
Outro ator que destaco é o até então desconhecido (para mim) Irandhir Santos que interpreta o Defensor dos Direitos Humanos Fraga, que na história vive o novo marido de Rosane (Maria Ribeiro), a ex-esposa de Nascimento no primeiro filme. Fraga é uma espécie de opositor às ações policiais do próprio Nascimento, e vem inclusive à público execrar as atitudes do BOPE. Fraga é o chamado “comunistinha de faculdade” e aparece sempre à frente das ações do BOPE se dizendo contra o assassinato de traficantes e pregando que todos eles tem salvação, desde que o sistema carcerário permita que essas "vítimas da sociedade" possam se regenerar. Pura utopia. Como o próprio Nascimento alega no filme, “a opinião pública gosta de bandido morto”. Irandhir é um excelente ator pernambucano de 32 anos vindo do teatro, e deixou claro todo seu talento em cenas em que ele apresenta argumentos de o porque a forma como o BOPE age na maioria das vezes é uma forma fascista. Ele passa verdade em seu papel, e sua atuação é tão digna quanto a de Wagner Moura.
Embora sejam dois personagens detestáveis dignos de ódio, tanto o Capitão Fábio (vivido por Milhem Cortaz), quanto o deputado e apresentador de TV Fortunato vivido por André Matos funcionam como o alívio cômico da trama, garantindo boas risadas com suas aparições grotescas na tela. Fábio continua o mesmo corrupto de sempre (como o era em Tropa 1), se aproveitando o quanto pode das facilidades de sua profissão e são proferidos por ele a maioria dos jargões de fácil assimilação da vez. “Vai dar merda” colou que nem chiclete. No caso de André Matos, seu personagem representa os diversos apresentadores de TV que esbravejam contra o crime sem botar medo em ninguém, e ele é ligado às milícias, que são as grandes beneficiadas pelas ações de limpeza do BOPE nas comunidades. É um elemento novo à trama, e é inserido como um certo apresentador manauára que "fabricava" seus próprios mortos para promover em seu programa de TV (mais detalhes aqui).
No mais, André Ramiro volta a encarnar o sucessor de Nascimento no BOPE André Mathias ainda sem demonstrar uma atuação muito inspirada. Maria Ribeiro apresenta competência interpretando Rosane a grande mediadora entre Nascimento e seu filho, o agora adolescente Rafael (Pedro Van Held), que cresce sem ter muito a atenção do pai. No elenco também constam Emílio Orciollo Neto (como Valmir)e Tainá Müller (como Clara).
Tropa de Elite 2 fala de corrupção, fala de moral e acima de tudo tenta nos mostra que uma pessoa incorruptível deveria ser o alicerce de uma sociedade justa. O Capitão Nascimento não se deixa corromper e devíamos seguir seu exemplo fincando bem os pés no chão e não deixando que ninguém se aproveite de nossas fraquezas. Tropa de Elite 2 é um filme que faz pensar acima de entreter pura e simplesmente, e é um exemplo do que o cinema nacional é capaz de produzir desde que se tenha esmero e competência.
Nota: 10
NAMASTE!