22 de julho de 2020

Crônica de um romântico idiota


Eu sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores...”, já diria o Roberto. É assim que me sinto às vezes nesse mundo tão acelerado onde tudo é tão efêmero e sem sentido. Num dia se está completamente apaixonado por alguém, no instante seguinte você está bloqueado, excluído e quiçá esquecido no Facebook desse mesmo alguém. Bizarro, muito bizarro.
Ser romântico e se entregar a relacionamentos não dava certo, e por isso eu não queria mais namorar. Não estava completamente feliz com minha vida de “passador de rodo”, mas também não queria me envolver seriamente com ninguém pelo simples fato do que isso significa a longo prazo: Uma porção de dores de cabeça e em especial um coração ferido e maltratado. 
Felícia me encontrou assim, ferido e cansado de sofrer. Mais de um ano em uma fossa profunda de onde eu ainda estava aprendendo a sair vagarosamente, cuidando de meu jardim para que as borboletas voltassem a sobrevoar. Afinal, ninguém consegue viver sozinho por tanto tempo... Mesmo que isso signifique ficar com várias pessoas erradas até encontrar a certa. Se é que essa desgraçada existe. 
Deixe-me contar um pouco sobre Felícia.
Nunca a tinha visto antes por ali. A primeira vez se deu quando uma pessoa me apresentou dizendo que ela havia me chamado de chato, sem nem ao menos eu saber de quem se tratava. Com sorriso largo ela me explicou que “não havia dito aquilo” ou que “não era verdade”, sei lá, mas não dei grande importância a isso. Fatos cotidianos em uma profissão em que “conhecemos” muita gente que nem ao menos sabemos o nome. 
Felícia era o nome dela.
Isso vim a saber mais tarde pela mesma pessoa que nos apresentou. Ela tinha algo que me chamava atenção. Não eram os cabelos loiros, nem a roupa que usava... O sorriso. Acho que era o sorriso. Largo, sincero. 
Nosso segundo contato foi quando ela apareceu na porta da sala do trabalho e me pediu em tom meio sussurrante que eu a adicionasse no Facebook. Brinquei que não podia fazer aquilo, pois estávamos proibidos de fazer tal ação na época. Era verdade, tínhamos que evitar contatos excessivos entre funcionários, nada de beijinhos, abraços ou contatos além daqueles necessários, mas algum tempo depois infringi essas regras, e a procurei na Rede Social. Ela estava com uma criança no colo na foto de perfil, dei uma fuçada de leve em seu álbum, em suas postagens e não percebi nada de mais. Nenhum sinal de namorado, ficante, peguete e afins. Sempre começo por essa parte. 
O terceiro contato foi um beijo no ar que ela me mandou através do vidro da mesma sala e que me deixou intrigado. “Hmm, acho que rola um interesse”, pensei eu na ocasião. Mais tarde ela me confessou que não havia, o que me levou a elaborar outra teoria: “Deve fazer com todo mundo então. Nada de especial”. 
Ironia do destino ou não, depois que seu nome já havia se tornado recorrente quando conversava com aquela pessoa que nos apresentou, eu vim a substituir o dito cujo em suas férias trabalhistas, e acabei me tornando mais próximo de Felícia e seus amigos. De uma forma ou de outra, com essa aproximação, ela realmente começou a apresentar interesse (desta vez era, não é possível!). Começamos a conversar pelo Messenger do Facebook cada vez com maior frequência e deixamos de ser estranhos um para o outro. Em certo grau pelo menos. Sem saber, eu estava à procura de uma companheira SIM, embora meu cérebro gritasse “é fria, filho da puta!”, e quanto mais descobria sobre ela, mais me interessava. “Ela gosta de séries e do Homem de Ferro! Porra! Não pode ser algo ruim!”, pensei, e continuei me enganando enquanto me envolvia em conversas cada vez mais reveladoras. 
Uma das primeiras características que descobri sobre Felícia era que ela era extremamente ciumenta e possessiva, algo que também considero um dos meus piores defeitos. Dizem que quem sente ciúmes é porque tem medo de perder aquilo que possui, e pra mim isso sempre rolou como um mantra sagrado, embora eu soubesse que os ciúmes sufocam a pessoa amada a ponto dela não querer mais que você se preocupe com ela. No caso de Felícia, ela deixava explícito, mesmo antes de namorarmos, que não gostava que eu tivesse qualquer contato mínimo que fosse com qualquer outro ser humano do sexo feminino. Apelidinhos a outras meninas então estavam totalmente proibidos, e às vezes eu recorria a certos diminutivos na hora de chamar uma fulana ou outra. Ela mesma eu aprendi cedo a chamar de “”. Achava carinhoso, e imaginava que aquilo nos aproximava. Pelo menos em minha cabeça. 
O fato é que a evolução de nossos papos via Facebook aconteceu naturalmente, seus ciúmes aumentaram e meu interesse por ela também. Na época eu estava de rolo com outra moça que trabalhava na mesma empresa. Não tinha qualquer interesse conjugal com ela, e em minha mente comecei a imaginar se Felícia, por sua vez, daria, quem sabe, uma boa namorada. “Já faz algum tempo, hein, Rodrigo. Ela é divertida, bonita, inteligente e gosta de séries e do Homem de Ferro, quem sabe rola?”. 
Já havia me ferrado muitas vezes em minha vida devido minha sinceridade, mas resolvi jogar logo todas as cartas na mesa com ela. Se Felícia ia se interessar, queria que fosse pelo Rodrigo de verdade, e não um amante latino que eu podia muito bem inventar por mensagens. Ela conhecia meu lado profissional e por mensagens conhecia quem eu era de verdade. E o que sou? Um romântico idiota com a sensibilidade de uma menina de 8 anos que não aprende com os erros. 
Eu vinha de um relacionamento que tinha acabado do nada e que havia me destruído emocionalmente (devido essa minha tolice de sentimentalismo). Contei tudo para ela. O que tinha passado, como me sentia e ela começou a me dar forças a sair daquela posição passiva em que me encontrava. Vários amigos haviam tentado antes, “sai dessa”, “não tem só ela de mulher no mundo”, “sai comendo as piranha tudo”, “dá o troco, engravida outra!”, mas claro que nessas horas palavras entram por um ouvido e saem por outro sem qualquer efeito. Nunca curti conselhos e nem autoajuda. Sempre achei melhor me entregar à depressão. Era mais fácil do que aceitar a realidade de que, enfim, meus amigos estavam certos. Era hora de partir para outra. 
As palavras de Felícia de que “eu era um idiota por achar que nenhum relacionamento mais daria certo apenas porque um foi uma bosta” entraram em minha mente, não porque ela era mais convincente do que meus amigos, mas porque eu achava que ela dizia aquelas coisas porque ela mesma queria ser o agente transformador da minha vida. “Ei, grande imbecil! Eu quero fazer a diferença. Me deixa ser a pessoa que vai mudar sua ideia quanto a relacionamentos!”. E a esperança nasceu novamente.
A segunda etapa de nosso “quase” relacionamento se deu quando ela me apresentou um aplicativo de celular chamado Whatsapp, que eu desconhecia. Quando indaguei de o porquê ela queria que eu instalasse, ela foi curta e grossa: “Vou fazer você se apaixonar por mim!”. Gargalhei por horas daquela observação. Eu estava interessado sim por ela, apesar de seu gosto peculiar por caras de barba e cheios de tatuagens, porém achei graça de sua petulância em dizer que eu iria me apaixonar por ela se conversássemos através do tal aplicativo. Instalei tão logo ela me mostrou o caminho das pedras e de lá pra cá, iniciamos uma forma de contato mais direta e mais simples. Como eu havia usado de sinceridade o tempo todo sobre minhas fraquezas (ignorando o manual do macho que diz que NUNCA devemos expor nossas fraquezas às mulheres), ela talvez tenha pensado o mesmo, e confessou algo que pela primeira vez me fez sentir certo desprezo por ela, algo que até então me parecia improvável. Felícia fumava, e aquela era uma das poucas regras, mas importantes, que eu impunha a mim mesmo na hora de um relacionamento. Fumar era sacanagem. Em minha mente era como se a telinha de Felícia tivesse se apagado na abertura do Big Brother, e depois daquela revelação desconsiderei completamente iniciar qualquer relação com ela. 
Podem me acusar do que quiser. Preconceituoso, frescurento, intolerante. Foda-se. Detesto drogas, cigarros e detesto quem faz uso desse tipo de substância. 
Mas era a Felícia... Minha candidata à namorada. A primeira em muito tempo. 
Dei-lhe uma chance e ela pareceu realmente disposta a largar o “vício” em nome daquilo que eu demonstrava querer com ela. 
Quando veio o primeiro encontro, achei que finalmente a coisa ia engrenar. Me preparei fisicamente e mentalmente para aquilo. Coloquei uma roupa bacana (nem lembro qual!), passei perfume... Mas no final, acabei sendo eu mesmo, nada de personagens. Ao vivo é mais difícil fingir ser outra pessoa. Fomos ao cinema. Ela estava maquiada, bonita, mas seu perfume me incomodou... Suas atitudes também. Dentro do cinema não rolou nada demais. “Ei, é um primeiro encontro! Esperava o que?”. Vimos o filme, comemos pipoca (sem sal) e depois a acompanhei até o ponto de ônibus. Tive a amarga sensação de que eu não a conseguia agradar com meu humor natural. (Sério! Eu não forço pra ser bobo. Eu SOU!). Pelo contrário. Ela parecia detestar tudo que eu falava. Dava cortes secos e às vezes até patadas. Achei desagradável. Foi ali que descobri que além de ciumenta, ela era meio estúpida. Não por querer, talvez, mas me senti meio que acuado. Apenas um pensamento vagava em minha mente... “Como lidar?”. Não havia respostas. 
O primeiro beijo rolou, com direito a mordidas e tudo mais. Foi breve. Esperava mais, mas pra um começo estava bom. Fui pra casa com a sensação de “Hmm... talvez não tenha sido uma boa ideia”, mas depois resolvi insistir. A primeira impressão não era a que ficava.   
Nossos encontros posteriores, sempre difíceis e com aquele clima de “sou casado e minha mulher não pode ficar sabendo” por causa da condição lá da empresa, foram melhorando o clima entre nós. No terraço de um Shopping, com vista a um estacionamento (muito romântico!), no entanto, que conheci Felícia de verdade (ou o que eu pensava ser). As conversas não duravam mais do que três horas, porém os contatos faziam valer a pena. Seus belos olhos negros não fitavam os meus, mas seu abraço aconchegante estava sempre presente. Os beijos rápidos eram característica dela mesmo, não era só uma primeira impressão. Fugia sempre que podia deles. Mas todo o resto era muito bom. Vai saber... de repente eu que beijo mal pra caralho e nunca ninguém havia me dito aquilo! 
Ali naquele terraço aprendemos que também discordávamos muito fácil um do outro, e que ela tinha um lado competitivo muito grande, que a fazia entrar em conflito comigo por qualquer assunto. Eu não sabia se era sua personalidade que era forte demais ou se ela simplesmente era uma teimosa de primeira estirpe, daquelas que não aceitava estar errada em nenhum momento. Sempre tive problemas com capricornianas...  
Foi naquele terraço que também aconteceu uma das coisas que acabou definindo nosso relacionamento, e aquele, segundo ela mesmo, também foi o motivo definitivo que a fez acreditar que eu era o cara certo para ela. Nem estávamos namorando oficialmente ainda (apenas extraoficialmente) e já falávamos de nossos filhos. Decidimos até os nomes dos dois. Bianca e Henrique. 

Nunca soube se ela fez aquilo de caso pensado ou se foi por pura intuição feminina, mas quando ela descreveu a cena mais linda de todas, eu não pude conter as lágrimas que se formaram em meus olhos. Sempre quis ter um filho que eu pudesse doutriná-lo ao caminho da Força e que eu pudesse ensiná-lo que com Grandes Poderes vem Grandes Responsabilidades de maneira que ele acabasse gostando das mesmas coisas que eu, e quando ela descreveu nosso pequeno Henrique correndo para mim sentado no sofá e dizendo que queria ver desenho comigo e que a mamãe não queria deixar, e que esse mesmo menino estava com uma capa presa às costas, tipo um super-herói, aquilo mexeu comigo de uma forma que nunca antes havia acontecido. Eu pensava em ter filhos, mas a mãe desse filho nunca estava clara em minha mente. O fracasso dos demais relacionamentos havia matado esse desejo, e Felícia soube trazê-lo de volta de maneira muito sutil. De repente eu vi em seu rosto a mãe que eu queria dar ao Henrique, e um sentimento inédito me tomou. Ela usou aquela cena mais vezes em nossas conversas, e em todas eu fui às lágrimas. Era aquilo que eu queria. Era Felícia que eu queria. Descobri que ela estava certa. Eu havia me apaixonado por ela... 

PS. - Esse trecho foi tirado de um e-mail antigo que seria enviado para a tal Felícia, mas que nunca foi concluído. Estava perdido nos rascunhos de uma conta antiga do Outlook.
O namoro acabou porque ele começou por um motivo todo errado. Felícia na verdade tinha ficado com "a tal pessoa" mencionada no texto que os tinha apresentado, mas sempre negava isso a Rodrigo, dizendo que "nada a ver". Ela tinha ficado com Rodrigo apenas como uma maneira de fazer ciúmes a tal pessoa — já que todos eram de um mesmo ambiente da empresa — e ao mesmo tempo tentar esquecê-la. Logo, ela mentiu o tempo todo para Rodrigo, que trouxa, acabou se apaixonando de verdade por ela.
Felícia só foi admitir às lágrimas a Rodrigo o caso anterior com a outra pessoa (que era casada e com FILHOS!) no dia em que eles terminaram o namoro, na escadaria da casa dela.
Rodrigo tem a aliança do namoro guardada até hoje... PARA LEMBRAR O QUANTO ELE É UM TREMENDO OTÁRIO!
Enquanto eles ficaram juntos, a tal pessoa fazia vários tipos de picuinhas e inventava um sem número de historinhas para que Rodrigo e Felícia se separassem.
Rodrigo assistiu Man of Steel com Felícia no cinema... E ele chorou vendo a cena em que o pequeno Clark Kent aparece no quintal de casa fazendo pose de herói... com uma capa amarrada nas costas. Isso foi depois da fantasia que Felícia contou a ele sobre o filho deles.
Bem depois do término, por WhatsApp, Felícia falou a Rodrigo em tom agressivo que "por sem quem você é, VOCÊ VAI ACABAR MORRENDO SOZINHO!". Rodrigo teve outros namoros depois dela... Ainda não morreu (até a conclusão desse post), mas está sozinho. Praga de ex pega.
"Felícia" é um nome fictício para ocultar a verdadeira identidade da garota, mas essa é uma história real.
NAMASTE!

21 de julho de 2020

Elektra Assassina de Frank Miller


Que Frank Miller foi um dos mais competentes e cultuados escritores e ilustradores de quadrinhos do Século XX isso ninguém duvida, porém, é inegável o quanto a qualidade de seu trabalho na nona arte decaiu vertiginosamente na entrada do novo século, o fazendo acometer escrever coisas como Holy Terror, All-Star Batman & Robin ou o desnecessário Batman Cavaleiro das Trevas III.

No mesmo ano em que ele trouxe ao mundo uma de suas principais obras para a DC Comics, a premiada Graphic Novel The Dark Knight Returns, Frank Miller também concebeu o roteiro de Elektra Assassina para a Marvel, um arco de histórias que ressuscitou — não definitivamente — a sensual ninja assassina das páginas da HQ do Demolidor, após sua morte pelas mãos do Mercenário em 1982.


Diferente de O Cavaleiro das Trevas que foi roteirizado e ilustrado por Miller — com cores de Lynn Varley —, Elektra Assassina foi construída à quatro mãos com o artista Bill Sienkiewicz, o que deu toda uma particularidade ao projeto. À primeira vista, os desenhos que são um misto de aquarelas, foto-montagens e colagens, causam certo incômodo, mas à medida que se mergulha na história, é difícil imaginar que a HQ funcionaria com outro desenhista mais "padrão Marvel". 

A arte fantástica de Bill Sienkiewicz

A arte interna de Elektra Assassina é de encher os olhos e a cada nova olhada nas páginas, um novo detalhe deixado lá de propósito por 
Sienkiewicz é descoberto. A narrativa cinematográfica imposta pelo texto de Miller — no auge da carreira nessa época, ali no final dos anos 80 — faz com que o leitor não consiga desgrudar o olho da história, nem para dar uma corrida até a geladeira e buscar algo para comer. É como ver um filme que te prende na ponta da cadeira a todo instante. 


Por ser uma criação sua, Miller destrói e reconstrói a Elektra ao longo de todo o enredo e nos faz descobrir até mesmo dons que nem imaginávamos que ela dominasse, fruto de seu período trabalhando com a organização maligna Tentáculo. Apesar de ser interessante ver os dois agindo juntos — e às vezes até um contra o outro —, aqui fica bem claro que a ninja assassina não depende do Demolidor para protagonizar uma ótima história, ganhando ares de estrela com brilho próprio. As participações de outros personagens conhecidos como o Nick Fury — diretor da S.H.I.E.L.D — são pontuais e não desviam as atenções de Elektra e sua missão de eliminar a Besta que pretende exterminar a vida na Terra. 


Vale lembrar, que Elektra Assassina é um conto que mostra uma missão do passado da ninja grega e que foi escrita muito antes de Frank Miller FINALMENTE trazê-la de volta dos mortos, na complicada — porém perfeitinha —Graphic Novel escrita e ilustrada por ele — também com cores de Lynn Varley — Elektra Vive (de 1990). Depois de sua ressurreição, à partir dos anos 90, a personagem virou figurinha carimbada em zilhões de sagas envolvendo a SHIELD, o Wolverine, o Tentáculo, os Skrulls e claro, o próprio Demolidor, seu principal amante e parceiro de atividades porradeiras.

Eu fui mais uma vez até o podcast Boteco do Infinito, do site Caras da TI para bater um papo com meu chapa Antonio Pereira sobre Elektra Assassina e falamos também sobre a revitalização do Conan, agora pela Marvel Comics. Lá eu declarei todo meu amor à Elektra e claro, aproveitei para falar mal do Frank Miller véio reaça. 

Clica aí no banner para visitar o site dos Caras da TI e ouvir o podcast com a minha participação. É de graça e é gostosinho.



NAMASTE!   

28 de junho de 2020

Review - Harleen e Destino Adiado


Para quem acompanha o Blog, não é nenhuma novidade que a minha mídia preferida é a textual. Desde criança sempre me expressei MUITO melhor escrevendo do que falando, cantando ou interpretando — Sim, pra quem não sabe, eu fui ator dramático por três anos e encenei duas peças na Broadway* —, mas de vez em quando eu acabo me arriscando por outros caminhos e saio das trevas para levar meu — parco — conhecimento aos ouvintes de podcast



A convite do meu amigo de longa data Antonio Pereira dos Caras da TI, eu escapei da quarentena e arrastei minha pança lá para o balcão do Boteco do Infinito, desta vez para recomendar a HQ Harleen do ilustrador e roteirista croata Stjepan Šejić. A obra faz parte do selo Black Label da DC, e mostra uma história de origem da Arlequina ANTES dela conhecer a loucura desencadeada pelo Coringa



O primeiro de três volumes mostra uma faceta pouco explorada nos quadrinhos da psiquiatra Harleen Quinzel e como seu trabalho a levou a conhecer de perto os mais perigosos internos do Asilo Arkham



Para quem é fã das histórias do Batman, a HQ tem uma cacetada de citações e inserções de personagens muito conhecidos do universo do morcego, mas para quem está chegando agora, caindo de paraquedas somente após os filmes do Esquadrão Suicida e Aves de Rapina — ambos estrelados pela Arlequina — também consegue acompanhar tranquilamente, não sendo necessário nenhum conhecimento adicional de mais de 80 anos de gibis. 



No segundo bloco do bate-papo de boteco, o Antonio recomenda a Graphic Novel Destino Adiado (Le Sursis) de Jean-Pierre Gibrat, artista francês — ah, vá! — que assina a arte e o roteiro da HQ. Muito além das histórias de linha com super-heróis, Gibrat leva o leitor a mergulhar no drama do personagem Julien Sarlat, um jovem soldado francês que é dado como morto numa malfadada missão e que é obrigado a assistir por de trás de uma persiana, do local onde está escondido, o próprio funeral além de ter que espiar de longe sem poder tocar Cécile, sua grande paixão. 



O autor conduz a narrativa de forma sublime, reflexiva e intimista, dando ao leitor um espetáculo visual de raríssima qualidade com seus desenhos realistas e a colorização aquarelada. A arte de Gibrat é um caso à parte dessa grandiosa obra — tida por muitos como a mais importante criada pelo artista — que o pessoal do Pipoca e Nanquim trouxe ao Brasil com exclusividade, tendo à venda também no site da Amazon


Quer saber mais detalhes das duas obras? 

Dá uma conferida lá na nossa conversa no Boteco do Infinito, bloco especial de quadrinhos do site Os Caras da TI. Puxa uma cadeira, pede uma cerveja e seja bem-vindo! 


Clique na imagem para ouvir o podcast

Quem quiser conferir, eu estive no Boteco do Infinito também para falar sobre Desafio Infinito e Black Hammer na edição número 1 do programa:






E na edição 2 eu fui lá falar sobre Homem Aranha: Negócios de Família e Conan, o Bárbaro






P.S. - Pra quem achou a arte de Destino Adiado semelhante a do Milo Manara, o rei europeu do quadrinho de putaria, o Jean-Pierre Gibrat também assina as ilustrações da HQ erótica Pinocchia:




* Sério que cê acreditou que eu fui ator de peça na Broadway? Sério mesmo? Fui nada. Era meu sonho ter participado de Cats... Mas pensando bem... Melhor não!



NAMASTE! 

19 de junho de 2020

Do Fundo do Baú - O Mal no Coração dos Homens

AVISO DE GATILHO EMOCIONAL: TEMA SENSÍVEL


Eu comecei a acompanhar os gibis do Homem Aranha no começo dos anos 90 e tudo que chegava às minhas mãos na época eram edições antigas de sebo, publicações dos anos 80 da Editora Abril em sua grande maioria. Naquele início de coleção eu ainda não sabia a importância que Gwen Stacy ou Mary Jane tinham na vida pregressa do velho Amigão da Vizinhança, mas eu conhecia bem a Gata Negra


O alter ego da lindíssima Felicia Hardy aparecia com grande frequência nas histórias do Homem Aranha que eu lia e aquilo criou uma predileção da minha parte por ela, mesmo sabendo que a mina era uma ladra e que vivia tentando carregar o Aranha para o mal caminho. E quem nunca se apaixonou por uma bandida antes, não é mesmo? 

Trecho de "Identidades Trocadas" desenhada por Al Milgrom com roteiro de Bill Mantlo

O Mal no Coração dos Homens é um arco de histórias protagonizado pelo Homem Aranha e a Gata Negra, escrito em seis partes por Kevin Smith, desenhado e arte-finalizado pelo casal Terry e Rachel Dodson. A saga começou a ser desenvolvida em 2002 nos Estados Unidos e as três primeiras partes foram publicadas por lá entre esse ano e 2003. Um atraso gigantesco fez com que o restante do arco só fosse concluído três anos depois, em fevereiro. Em agosto de 2006, a Panini publicou a primeira das três edições que contariam a história toda no Brasil e foi quando eu comecei a acompanhar. 



Kevin Smith é um dos nerds fãs de quadrinhos e filmes que mais deu certo no mundo. O cara não só tem um podcast onde entrevista zilhões de artistas famosos como também trabalha quase que ininterruptamente para o mercado, dirigindo filmes, produzindo roteiros, fazendo pontas em produções de Hollywood, protagonizando séries e até aparecendo como animação em alguns desenhos. Como roteirista, para a Marvel, seu trabalho de maior destaque talvez seja O Diabo da Guarda protagonizado pelo Demolidor, já para a DC, o cara reformulou o Arqueiro Verde na série Ano Um, embora também tenha roteirizado a polêmica HQ Cacofonia do Batman, que não agradou muitos fãs.


Seja como for, Smith fez mais um trabalho excelente em O Mal no Coração dos Homens - The Evil That Men Do, no original -, levando o leitor a mergulhar fundo numa história recheada de menções a drogas, piadinhas sexuais e até mesmo abusos, algo que não é muito costumeiro especialmente nas HQs do Homem Aranha. O começo dos anos 2000 foi marcado pela fase em que a Marvel - após a quase falência - começou a produzir séries mais adultas com seus principais personagens, e o selo Marvel Knight onde essas histórias passaram a ser publicadas, teve início justamente com o arco de Kevin Smith para o Demolidor. 

Aqui, Felicia Hardy é incitada a sair da aposentadoria da Gata Negra para ajudar uma amiga a localizar uma conhecida de ambas, uma super-modelo que desapareceu após um encontro com um famoso ator de cinema chamado Hunter Todd. De volta à Nova York, a Gata se hospeda num luxuoso hotel da cidade e começa a investigar o tal artista, quando então seu destino se cruza com seu ex-namorado, o Homem Aranha. 


Após um de seus alunos mais exemplares ter morrido supostamente por uma alta dosagem de heroína, Peter Parker, como seu espetacular alter ego, sai para investigar possíveis ligações criminosas que o estudante poderia ter e é quando ele descobre que o rapaz também teve contato com o megastar Hunter Todd, que parece ter predileções por garotos

A Gata Negra e o Aranha percebem que estão em busca de um mesmo alvo - o tal traficante que assassinou tanto a amiga de Felicia quanto o aluno de Peter - e quando ambos veem Todd ser morto na frente deles com uma inexplicável overdose de heroína que pareceu ter sido aplicada à distância no ator, um nome vem a tona: Senhor Brownstone.


O texto de Smith é incrível e os diálogos são cheios de sacadas muito bem inseridas que fazem o leitor rir às vezes só pelo ridículo. A sequência em que Peter e Felicia têm uma DR pelo relacionamento antigo deles é sensacional:

"Quer dizer que um de nós aqui, e eu não tô citando nomes, mas um de nós aqui terminou o namoro porque estava apaixonada pelo espetacular Homem Aranha... Não pelo bom e simples Peter Parker."

"Meu Deus, isso de novo!"

"Só tô falando."

"O que cê quer de mim? Eu era uma menina! Não fui eu quem fugiu e se casou com a namorada do colégio, OK? Se você tivesse sido um pouco mais paciente comigo, eu teria me acalmado e podia ter voltado, mas não... você tinha que estar com a Mary Jane."  
  

Esse diálogo pareceu ter saído de uma conversa de WhatsApp, ou da boca de um casal comum num bar de tão realista. Embora a perseguição ao tal Sr. Brownstone seja o mote principal da história, são esses pequenos detalhes nos diálogos que fazem com que o texto de Kevin Smith se diferencie daquilo que estamos acostumados a ler em HQs. 


Após a DR, Peter e Felicia meio que fazem as pazes e aí começam as insinuações sexuais entre eles. Ela dizendo que tem certeza que ele está excitado a vendo de tão perto naquele traje de couro apertado e ele admitindo que é perigoso DEMAIS ficar muito perto dela, que é fácil se perder com Felicia. Vale lembrar que Peter Parker era um senhor casado resistindo à tentação nessa época.

"Sentido de Aranha vibrando..."

"É assim que cê tá chamando isso agora, é?"


Felicia ainda admite que está a fim dele enquanto os dois começam a se balançar pela cidade rumo ao hotel onde ela está hospedada e ele admite que ela foi a garota mais inteligente e divertida que ele conheceu "dentro ou fora do uniforme", ambos em pensamento. É muita tensão sexual

O Mal no Coração dos Homens começa a rumar para caminhos mais obscuros após a pausa de três anos pela qual a história passou, e após deter a Scorpia juntos e descobrir que ela tinha sido contratada para eliminar o "novo" Rei do Crime da cidade, Garrison Klum, Peter e Felicia divergem quanto a esperar ou agir logo para deter Klum, uma vez que eles descobrem que o cara é o tal Sr. Brownstone. 


Sem muito planejamento ou mesmo sem saber o que podia estar esperando por ela lá dentro, Felicia decide invadir o prédio do empresário sozinha e acaba sendo surpreendida por Klum, que a imobiliza com uma dosagem específica de heroína. Esse capítulo se encerra nos dando a certeza que a Gata seria estuprada por Klum, ali indefesa, mas é aí que uma reviravolta completa ocorre, dando foco agora ao irmão mais novo de Klum, Francis

Após ser encontrada seminua embaixo do corpo de Garrison, sem mais nenhuma evidência de que uma terceira pessoa teria estado ali no apartamento, Felicia acaba sendo incriminada e presa pela morte do empresário. Peter pede ajuda ao amigo e advogado Matt Murdock para livrar a ex-namorada e de forma muito inteligente, Smith acaba inserindo o Demolidor na história. 


Juntos, os dois tentam provar que Hardy é inocente do assassinato brutal de Klum, mas quando ela se recusa a alegar em julgamento que teria sido estuprada e que o teria matado em legítima defesa, o Aranha e o Demolidor não veem outra solução senão tirá-la da prisão


Durante o mal fadado resgate, Peter e Matt descobrem que Francis Klum é o verdadeiro responsável pela morte de Garrison e que tanto ele quanto o irmão eram mutantes capazes de manipular um baixo grau de poderes de teleporte - Garrison capaz de teleportar pequenas doses de líquido e Francis capaz de se teleportar a curtas distâncias. Após uma vida inteira de abusos sexuais por parte de Garrison, Francis decidiu acabar com sua vida ao flagrá-lo prestes a estuprar Felicia, e prometeu buscá-la na prisão mais tarde após salvá-la. 


Enquanto Francis conta a ela todos os abusos pelo qual foi forçado a passar por Garrison, Felicia acaba confessando a ele que também tinha sido abusada por um ex-namorado na época da faculdade e como aquilo a tinha abalado profundamente. 


O final de O Mal no Coração dos Homens é um dos mais trágicos e chocantes que eu já li numa história do Aranha - jamais superando a morte de Gwen Stacy, óbvio - mas apesar de uma ou outra deslizada no roteiro - como a forma idiota com que o Aranha e o Demolidor decidem invadir a prisão pra soltar Felicia - essa é uma das mais maduras histórias que eu já li com o Aranha. 


Por abordar temas tão sensíveis como drogas e abuso sexual de uma maneira limpa - nunca mostrando as vias de fato - Kevin Smith acabou criando um pequeno marco nos quase 60 anos de histórias do Escalador de Paredes, e um aviso de que às vezes, o perigo está dentro da nossa própria casa. 

Sobre Felicia e Peter, eles acabam se entendendo no final. Ela enfim admite que quando ele revelou sua identidade secreta a ela, aquilo a ensinou a confiar de novo nas pessoas, algo que ela tinha perdido quando foi abusada pelo ex-namorado na faculdade.

Página de Homem Aranha #59 (1988) da Editora Abril

Eu adorei essa série porque envolve três dos meus personagens preferidos da Marvel e além do que os desenhos de Terry Dodson com a arte final de Rachel Dodson fazem com que cada quadro seja um deleite em detalhes. Conhecido por desenhar silhuetas bem voluptuosas em suas personagens femininas, Dodson trabalha a Gata Negra como ela deve parecer aos olhos... Uma gata


A Salvat relançou O Mal no Coração dos Homens há algum tempo em formato encadernado com capa dura na Coleção Definitiva do Homem Aranha, e ainda pode ser encontrada no site da editora por módicos R$ 50,00. Vale muito a pena pra quem é fã do Aranha das antigas ou novato. A história não está datada e ainda pode ser lida tranquilamente nos dias de hoje.   

NAMASTE! 

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