20 de julho de 2012

Um instante no tempo


Nenhuma história em quadrinhos até hoje havia me deixado com um sentimento de tristeza atravancado na garganta, com aquela sensação de infelicidade e de desesperança no peito como Um instante no Tempo deixou. One moment in time (título original) é a história criada por Joe Quesada (o até então, todo poderoso da Marvel e responsável por todas as mudanças editoriais nas HQs do Homem Aranha) para explicar afinal, o que aconteceu no fatídico dia do Casamento de Peter Parker e Mary Jane.

Há algum tempo, como bem escrevi aqui em um post especial, o querido e roliço editor chefe da Marvel decidiu que queria renovar o personagem Homem Aranha e trazê-lo para mais perto do público jovem, que em teoria, é o grande consumidor das histórias e produtos ligados ao herói. Para isso, Quesadinha, nosso parceiro, decidiu que queria acabar com o casamento do personagem com sua amada Mary Jane, uma vez que um personagem amarrado a um compromisso de tal grandeza não parecia interessante à nova geração de leitores (isso na opinião obesa de Quesada, claro). 

Desta forma, junto ao escritor J. M. Straczynski (saúde!!), Quesada escreveu a história derradeira que iria tornar o Amigão da Vizinhança solteiro novamente, dando ao novo público que ele pretendia atingir, uma visão mais moderna e jovem do personagem. Depois de anos de decisões editoriais de gostos duvidosos na linha de histórias do pobre Escalador de Paredes, Straczynski decidiu chutar o balde, e caiu fora, falando cobras e lagartos do ex-patrão. Segundo o autor, ele havia sido obrigado a escrever absurdos como os filhos de Gwen Stacy com Norman Osborn ou os poderes totêmicos do Aranha, e a decisão final que ia tornar Peter Parker um homem livre e desimpedido (o famoso pacto com o Mephisto) desagradava por completo a opinião do tiozinho acerca do que ele compreendia de roteiro. Daí a razão pelo qual ele decidiu pular fora do barco antes que ele afundasse de vez.
 
Norman dando uns catas na Gwen

Pois bem, nada impediu que Quesada escrevesse (e desenhasse) a saga Um dia a Mais, e além do polêmico e precipitado desfecho da história, em que um herói (até então) íntegro como Peter Parker aceita fazer um pacto com um personagem demoníaco em troca da restauração da saúde de sua querida Tia May, ficaram dezenas de dúvidas na cabeça dos leitores:

Afinal, o que a MJ sussurrou no ouvido do Mephisto?

O que Mephisto ganharia com o pacto, além da destruição do casamento de Peter e MJ, e o que garantia que ele não estava blefando, voltando a atormentar a vida do Aranha depois (assim como fez com o Motoqueiro Fantasma, por exemplo?)

A morte da Tia May, por mais doloroso que fosse para Peter e MJ, não seria um preço a se pagar por uma consciência tranquila? Valia mesmo a pena fazer um acordo com um dos piores vilões da Marvel só para que a velhinha voltasse à vida?

O que na vida do Aranha exatamente foi alterado pelos poderes do Mephisto e até que número das edições que colecionamos todos esses anos nós poderíamos manter e quais podíamos fazer uma fogueira ou limpar a bunda com elas?

Por que diabos trazer o Harry Osborn de volta?? 


Maldito Quesada!

O tempo passou, e as novas histórias publicadas nas edições do Homem Aranha (o chamado Brand New Day) conseguiram agradar o público em geral (a mim não, manganão!), trazendo um Aranha muito mais divertido, interagindo com um núcleo variado de novos personagens além dos clássicos como Harry Osborn (que merda!), Flash Thompson (agora um cadeirante ferido de guerra), J. Jonah Jameson (agora o prefeito de Nova York) e a Tia May. Suas histórias solo se tornaram tão divertidas, mas tão divertidas, que tanta piada até chega a incomodar, e eu passei a dar preferência em acompanhar o herói aracnídeo somente em suas aventuras ao lado dos Vingadores. Ali, ele é só mais um vingador e não nos interessa em nada sua vida como Peter Parker, que aliás, depois dessa fase do Brand New Day, virou um samba do Aranha doido. 


Peter divide um apartamento com uma amiga latina que apesar de ter uma queda por ele, o trata mal feito um cachorro.

O ranzinza Jameson se tornou o prefeito de Nova York, o que fez com que sua perseguição ao Aranha se intensificasse agora que ele tinha a força policial a seu lado.

Solteiro e livre para “voar” o que não faltam agora são pretendentes para Peter, além de que seus velhos inimigos ganharam reformulações um tanto quanto bizarras (o que dizer daquele Doutor Octopus que mais parece uma múmia??).

Apesar de toda essa renovação, alguns personagens me pareceram deslocados nas histórias como a própria Mary Jane, que aparecia esporadicamente e sempre com aquele ar de mistério, deixando uma pulga atrás da orelha dos leitores. “Ela sabe de tudo que aconteceu desde o pacto com Mephisto?”. “O que aconteceu entre ela e Peter nesse universo?”. Quando ela retornou de uma viagem que havia feito (aparentemente por causa de algum desentendimento com Peter) ela se tornou um elefante na sala de estar, uma vez que ela não se encaixava mais nas histórias por não ser mais a esposa do Aranha e nem aquela amiga presente de antes do casamento dos dois. O super-Quesada precisava resolver esse empasse, e então ele criou One Moment in time


A primeira edição de Um Instante no Tempo é quase que por completo um retcon inserido na clássica história do Casamento do Homem Aranha (que eu resenhei aqui). Enquanto Peter e MJ discutem as pontas soltas que ficaram do relacionamento deles no presente (com excelentes desenhos do próprio Quesada), flashbacks tirados da história original (desenhadas por Paul Ryan) e com novas situações (desenhadas por Paolo Rivera) nos mostram que a velha sorte de Peter Parker faz com que ele não consiga chegar à igreja a tempo de seu próprio casamento, deixando MJ esperando nas escadarias.

Vamos tentar entender.

Na história original, logo no início, Peter surpreende Elektro e seus comparsas prontos a dar mais um golpe. Como é de se esperar, o Aranha detém os vilões e todo mundo é preso sem maiores problemas, enquanto o personagem imagina que no próximo dia estará se casando.

No retcon, o Aranha também detém a gangue, só que um dos bandidos aliados de Elektro, graças a uma intervenção (ridícula) de um pombo, consegue escapar de dentro da viatura da Polícia (!) e ele acaba sendo o grande responsável por tudo de errado que acontece no dia do casamento de Peter e MJ.


Na noite anterior ao casório, Peter está na ponte George Washington contemplando a foto de Gwen Stacy e imaginando se está fazendo a coisa certa em casar com MJ (exatamente como na história original) quando então ele ouve tiros e sai em busca de ação. Ali perto, o mesmo bandido que a Polícia deixou escapar está buscando vingança contra o policial que o algemou e o humilhou naquela manhã, o Aranha consegue salvar o homem e sua esposa da mira vingativa do bandido, mas é atingido por um tijolo e acaba caindo de uma altura absurda junto com ele para salvá-lo da morte, se perdendo na inconsciência ao atingir o chão.

Resultado?

Enquanto Peter está desmaiado, passa-se o tempo e ele acaba perdendo o horário do próprio casamento, chegando tarde demais na igreja e com um baita de um olho roxo por baixo da máscara. 


Ok. Essa foi parte da solução safada e sem vergonha que Quesada encontrou para desfazer o casamento do Homem Aranha, mas depois piora.


Peter acaba encontrando MJ em seu apartamento mais tarde e tenta explicar o que houve para ele não ter chegado a tempo na igreja. Transtornada, a moça não consegue aceitar o fato de que o Homem Aranha e suas responsabilidades sempre estarão entre ela e Peter, e decide deixa-lo de vez ao pedir que ele escolha entre o Homem Aranha e ela. Os dois se separam e Peter entra em um estado de depressão forte, o que o faz sair de casa apenas para combater o crime. MJ para tentar esquecê-lo se enfia no trabalho, mas ela sente que ficara um vazio dentro dela e que ela não consegue viver sem ele. É a Tia Anna quem dá o empurrão necessário para que ela tente se reconciliar com Peter num dos diálogos mais profundos do arco.

Tia Anna salvando a pátria

Quem dera se todos os casais que terminam seus relacionamentos pensassem assim, não é mesmo? “Aquele homem ama você e também sei o quão ele é especial pra você. Ele tem que ser. Ele fez você se apaixonar por ele”. Quem dera todo mundo tivesse uma Tia Anna para dar um conselho desses!

Peter e MJ se reconciliam, embora em comum acordo, eles resolvam não mais se casar (como vocês bem sabem, na Marvel é comum fazer pactos com o capeta, mas divórcio é inaceitável!), vivendo como namorados até a aliança de Peter com Tony Stark, o registro de super-heróis, a revelação de sua identidade secreta ao vivo para todo o mundo e o desenrolar dos fatos da Guerra Civil


Como no original, graças à revelação da identidade secreta, Peter estampa um alvo bem na testa da Tia May e da Mary Jane, e o Rei do Crime como vingança contrata um mercenário para executar o herói, que acaba atingindo a pobre velhinha com um tiro, deixando-a entre a vida e a morte. Como no original, todos os super-fodões da Marvel dizem que nada pode ser feito para salvar May, porém, depois de um milagre em que Peter faz uma ressurreição cardíaca na tia, sua saúde é restaurada gradativamente, mas nada muda o fato de que o alvo continua pintado na testa das mulheres que Peter ama e de todo mundo ao redor deles. 


Após impedir que outro mercenário contratado pelo Rei para apagar a Tia Anna cumpra sua missão, Peter leva MJ desacordada até o Santuário do Doutor Estranho e apela mais uma vez ao mago Supremo para que ele conserte as coisas. Enquanto todos souberem sua identidade, MJ e todas as pessoas que ele ama jamais estarão seguras, e ele pede desesperadamente para que Strange o ajude com seus dons místicos. 

Após confabular com os outros Illuminatis Reed Richards e Tony Stark, Strange em acordo com eles decide ajudar Peter, e criando um feitiço aliado a um vírus tecnológico (!!) criado por Stark, eles repetem o processo que fez o mundo esquecer do Sentinela (o herói maluco que não sabia de seu passado), apagando de vez os indícios que provavam que Peter e o Aranha eram a mesma pessoa. 

"Olhe ali, Peter! Um elefante cor-de-rosa!"


Não entendeu nada?

Tudo bem. Como diria o Quesada, “é mágica, não precisa de explicação!”.

No último instante da concretização do feitiço, no entanto, Peter se arrepende de deixar que MJ, assim como o restante do mundo (incluindo o Dr. Estranho), também se esqueça do passado que eles viveram, e a coloca dentro da bolha de proteção criada pelo mago para que ela, assim como o próprio Peter, não tenha a memória apagada sobre os fatos ocorridos desde a Guerra Civil. 


É comovente a forma como Peter argumenta o porquê dele querer que MJ também se lembre de sua vida dupla, e os desenhos de Quesada ao final da edição mostrando a separação definitiva do casal, quando então MJ, mais uma vez, covardemente, decide abandoná-lo por “não poder suportar a ideia de voltar a viver ao lado de um super-herói cuja vida está sempre em risco” são muito bem feitos, apesar de que a atitude da ruiva vai contra tudo que conhecemos da personagem desde sempre.

A verdadeira MJ jamais diria isso a Peter.

Como que a mulher que sabia da identidade secreta de Peter desde a adolescência e que aceitou viver ao seu lado sabendo de todos os riscos que ambos correriam, mostrando uma força invejável que representou a maturidade da personagem, de uma hora para outra foi transformada em uma covarde, incapaz de aceitar que Peter é o Homem Aranha?


Mary Jane que figura nas histórias do Homem Aranha desde os primórdios e cujo relacionamento amoroso com ele brotou da mais sincera e bonita amizade que se fortificou depois da morte de Gwen Stacy, foi jogada para escanteio nas novas aventuras do aracnídeo. Estávamos acostumados a presença da ruiva nas HQs do Aranha. Ela servia como o pilar de sustentação para ele, mesmo quando seu mundo parecia desabar, e tudo isso foi perdido, deixando Mary Jane meio que avulsa agora que ela não é mais o interesse romântico do herói. Ao fim do arco, após beijá-lo e dizer que ainda o ama (!!) MJ o liberta do compromisso que um dia eles tiveram, e diz que está torcendo para que ele encontre alguém “forte o suficiente que seja capaz de aceitar sua vida dupla!”. 


Com One moment in time, Quesada amenizou a história de que “um pacto com o Demônio fez a mudança na vida do personagem” e foi como se ele desejasse profundamente que o encantamento do Dr. Estranho também apagasse a NOSSA MEMÓRIA sobre todas as cagadas que ele havia feito com o Homem Aranha. 

Não funcionou não, seu Quesada. Eu me lembro direitinho!


Agora o responsável pela amnésia coletiva sobre a identidade do Aranha não era mais um ser maligno, e sim um ser que manipula magia "branca", mas não dá pra esquecer que tudo isso só aconteceu por causa do pacto com o Mephisto!

É muita fanfarronice!

Um instante no tempo tem momentos lindíssimos e comoventes entre Peter e MJ. O amor deles é comprovado diversas vezes, e não são raros os momentos que nós entendemos que eles formam um casal perfeito e que Peter jamais encontraria alguém como ela em seu caminho. O próprio Quesada nos faz crer nisso. Na vida real ou na ficção, nunca vou conseguir entender essa de "te amo, mas vou te deixar". Não há qualquer motivo em separar Peter e MJ, a não ser claro, o de que Quesada queria finalizar a história do casamento com o qual ele nunca concordou.


Ao colocar o impasse da dúvida que Mary Jane tem em aceitar a vida dupla do namorado, Quesada afasta a personagem do herói, permitindo assim que ele se torne o solteirão que tanto o editor-chefe queria desde a época da fase Premium das edições nacionais do Aranha. Pois bem. Peter agora é um meninão solteiro e comedor que vai passar o rodo geral nas “cocota tudo” e comprovando isso, na edição nacional seguinte ao desenrolar dos fatos de One Moment in Time, Peter já engata um namoro com Carly, uma das personagens novas de seu universo, para alegria da geração descolada ao qual suas histórias são destinadas.

Pois é. Acho que estou ficando velho demais para Histórias em Quadrinhos.

Pobres leitores antigos. Pobre Homem Aranha!


NAMASTE!

7 comentários:

  1. Cara, desde o terceira 03 de Um dia a mais, parei de ler o aranha, não deu pra engolir o que Quesada fez...

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  2. Muito bem colocada tua resenha. Eu li One More Day e One Moment In Time... Nossa, nunca me senti tão mal... É pior que descobrir que Peter era um clone, porque pelo menos ali tínhamos um persongem carismático, Ben Reilly (que infelizmente o retcon não ressuscitou... era um personagem de que eu gostava, apesar de tudo!). Mary Jane foi a personagem que mais evoluiu em termos de roteiro: de uma garota tresloucada pra uma mulher responsável e corajosa que aguentava a barra do marido super-herói... Ela fazia parte do sentimento de humanidade que o Homem-Aranha passava, afinal quer coisa mais humana que casamento?! Agora temos um Peter garanhão (?! Cadê o nerd responsável?!) e uma MJ covarde... Espero muito que no final seja tudo novamente um plano de Norman Osborn... Isso, por pior que seja, é bem melhor que um pacto com Mefisto, um Harry ressuscitado e um dos casamentos mais emblemáticos dos quadrinhos desfeito...

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    1. Exatamente o que penso.
      Obrigado pelo comentário, Carlos!

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  3. Cara, que resenha fantástica. Sempre que venho aqui eu leio alguma coisa fodástica. Vou colocar um atalho do teu blog no meu http://marcgadelhadesenhos.blogspot.com.br/

    Você falou tudo o que tava engasgado na goela dos fãs do Aranha. Havia outros meios "mais reais" pra se consertar tanta bobeira feita com o Aranha, mas essas soluções que o Quesada tomou fizeram mais estrago que a "esticação" da Saga do Clone. A cronologia perfeita e impepecável de meio século do Homem-Aranha ficou detonada por causa disso. Pena mesmo.

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    1. Obrigado, Marc.
      Fiquei lisonjeado com os elogios.
      Viramos alvos das "pegadinhas do Quesada", o problema é que não tem a menor graça.

      Obrigado também pela divulgação do Blog!

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  4. Deixa ver se eu entendi... o Mefisto fez com que HA se atarsa-se pros eu casamento, depois disso...os fatos se desenvolveram normalmente até o balaçod a tia May...PP conseguiu salvar ela...

    Daaí Tony Stark + Dr Estranho fizeram uma macumba com um virus pra todo mundo esquecer a identidade dele...

    ...E a MJ também?!

    Todos esses eventos fizeram com que MJ tendo a memória apagada ou não... se afasta-se dele.

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    1. Na verdade a memória da MJ não foi apagada porque no último instante o Aranha carrega ela pra dentro da bolha, o que faz com que os dois sejam os únicos que se lembram de tudo.
      Ela se afasta dele por puro egoísmo, por ser incapaz de "suportar" a ideia de ter a sua vida colocada em risco pelo Homem Aranha... Transformaram a ruiva numa covarde depois de tudo que ela encarou com o Peter desde o casamento...
      Maldito Quesada!

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