5 de agosto de 2013

A corrupção do Heroismo



Herói – 1.Homem extraordinário pelos feitos guerreiros, valor ou magnanimidade.
2.Protagonista de obra literária.

Magnânimo - Que tem ou denota grandeza de alma; generoso.

Fui uma criança que cresceu lendo histórias em quadrinhos de super-heróis, e como tal, aprendi a admirar os valores dos meus personagens preferidos e passei a seguir seus preceitos em minha vida real, já que não havia pessoas próximas a mim que me inspirassem da mesma forma.

Durante a minha alfabetização e mesmo depois, o Superman, o Homem Aranha, o Capitão América e os Vingadores já faziam parte do meu imaginário, e todos eles me ajudavam a ser o melhor que eu podia com seus exemplos de nunca matar, respeitar o próximo e dar o braço a torcer quando a situação exigisse. Cresci vendo Peter Parker sendo esculachado na escola pelo Flash Thompson e não revidar, mesmo sabendo que podia, vi Steve Rogers ser criticado por pegar leve com seus inimigos e vi o Superman mostrar a todos que não eram seus super poderes quase divinos que faziam dele o maior super-herói de todos os tempos, e sim a força de seu caráter e suas convicções.


O mundo atual é outro. Força de caráter, integridade, respeito pela vida humana e condescendência estão fora de moda, tais virtudes e preceitos já não convencem mais a maioria das pessoas que consomem quadrinhos e filmes baseados em super-heróis, e isso faz com que o mercado se volte para esse novo público, dando a eles o que eles querem.


Em entrevista recente, enquanto anunciava sua contratação pela Boom Comics!, o mestre George Perez, responsável pelas memoráveis Crise nas Infinitas Terras e Vingadores X Liga da Justiça, comentou um pouco sobre sua visão do atual mercado de quadrinhos e a razão pela qual ele deu as costas a DC Comics, editora que trabalhou durante um longo período de sua carreira como desenhista:

“Muitos dos personagens que eu cresci lendo e aprendendo a amar se tornaram completos estranhos pra mim… Suas aventuras são determinadas por fatores que cada dia tem menos a ver com o que conhecemos como “uma boa história em quadrinhos” e mais a ver com a forma como essas propriedades podem ser exploradas para outros fins.As decisões finais no mundo das HQs está a cada dia mais longe do âmbito editorial, Warner e Disney acreditam que podem fazer melhor o nosso trabalho, e eles são os donos do dinheiro!”

Qualquer um que tem mais de vinte anos e que lê as HQs atuais sabe do que Perez está falando. A maioria dos personagens hoje está descaracterizada e os roteiros escritos para eles não seguem sequer minimamente o que eles já representaram, o que é triste. O Capitão América do Universo 616 (tradicional) está cada vez mais parecido com o da sua versão Ultimate, e não só na aparência. Ao assumir o comando da SHIELD, Steve Rogers tornou-se mais linha dura, e mesmo com sua essência de escoteiro ainda mantida, seus atos tornaram-se mais violentos e menos consequentes, o que é de se espantar naquele que sempre foi tido com um símbolo da Marvel.


Outro que foi modernizado para agradar os fãs foi o Homem Aranha, que em sua fase atual (ainda inédita no Brasil) tem sua mente dominada pelo Dr. Octopus e se denomina Homem Aranha Superior, o que tem sido um choque para as velhas gerações de fãs que acompanham o personagem. 



Mais agressivo e com métodos pouco ortodoxos de combater o crime, o “Superior” já é tido para muitos como a melhor versão do herói aracnídeo, o que é curioso, uma vez que Joe Quesada, o diretor-chefe da Marvel, acabou com o casamento de Peter e Mary Jane na polêmica “One More Day” (resenhada por mim aqui) justamente para fazer um update nas histórias do personagem, mas o que acabou funcionando não foi o Peter Parker pobre e solteiro, e sim o Doutor Octopus (um vilão desde os primórdios) agindo como o herói aracnídeo. Quem diria que eu viveria para assistir um Homem Aranha matador fazer sucesso com a molecada!


Mesmo no cinema as coisas andaram meio negras para os super-heróis, e com isso vimos o Demolidor do Ben Affleck deixando o bandido “Quesada” morrer nos trilhos do metrô, o Batman deixando o Ra’s Al Ghul morrer dentro de um trem e mesmo o Capitão América fazendo picadinho de um soldado da Hidra na hélice de um avião. Mesmo que levemos em consideração que em filmes de ação a morte dos “malvados” seja motivo de comemoração, não dá pra deixar passar o quanto isso soa estranho para quem conhece a fundo as personalidades de nossos heróis.


As mudanças temporárias de status como o já finado “Reinado Sombrio” que colocaram vilões como Norman Osborn e Venom na “crista da onda” da popularidade da Marvel e as mudanças de marketing que refizeram todo o universo DC no polêmico Reboot pelo qual a editora passou após os eventos da saga “Flashpoint”, vieram para pavimentar de vez esse novo conceito de heróis cascas-grossas, o que sepulta cada vez mais os velhos super-heróis com a qual cresci e aprendi tanto sobre o valor da vida.  


O que me motivou a escrever esse post além das declarações de George Perez, foi na verdade o filme Man of Steel e seu polêmico final, onde um Superman não vê outra saída senão tirar a vida do General Zod. Essa atitude do personagem gerou uma discussão acalorada nas redes sociais e nos fóruns de sites especializados, e vi muita gente defendendo sua decisão com a desculpa de que “era uma guerra, ele tinha que matar mesmo!” ou então “finalmente um Superman macho!”. O próprio Zack Snyder, diretor de Man of Steel veio a público explicar sua decisão de fazer com que o Superman matasse Zod:

“...O roteiro original terminava com Zod voltando para a Zona Fantasma e desaparecendo. E eu disse ‘não, o Superman tem que matá-lo’. Ele tinha que matar porque o mundo não é mais o mesmo que era quando ele foi criado – ou quando o primeiro filme saiu. A inocência acabou.
 Não há o que fazer com ele. Isso muda o Superman de maneiras que o tornam muito mais interessante.”

Resumindo: “Maaaassa, veio!”.



Snyder praticamente sepultou o conceito que o Superman trazia consigo desde sua revitalização lá pelos anos 50, e jogou na cara de quem quisesse ouvir que esse era o Superman que nós merecemos atualmente. Não é bem que eu discorde que a humanidade hoje está atolada bem fundo na merda da falta de educação, da corrupção moral, da falta de ideais e da honradez, mas não seria justamente esse o momento em que clamaríamos por símbolos de bondade e de esperança? Não seria esse o momento em que mais precisaríamos de nossos heróis de verdade?

Como disse na resenha sobre o filme Man of Steel, esse novo Superman não inspira ninguém, e ainda ensina as crianças que, na dúvida, mate seu inimigo, pois ele não hesitaria em fazer o mesmo com você.


 Por ser muito ligado a esse universo de super-heróis desde muito pequeno, hoje me vejo em dificuldades para aceitar que meus heróis morreram de overdose e que meus inimigos estão no poder mudaram, e que eles agora atendem o clamor do público por sangue. Não sou puritano ao ponto de não aceitar personagens violentos ou de virar o rosto toda vez que jorra sangue na telona. Aliás, pelo contrário. Assim como cresci lendo HQs cujo público prioritário era o infantil, eu também fui doutrinado na lei da porrada e do tiroteio, vendo meus outros heróis do cinema matando geral em filmes como Rambo, Exterminador do Futuro e Robocop.


“Se você gosta de filmes brucutus, qual o problema em ver o Superman matando, Rodman? Como você é fresco!”

Não é que eu não aceite bem personagens que resolvem tudo no tiro e na grosseria. Eu até gosto deles. Vibrei com os dois Mercenários (resenhados aqui e aqui), até hoje vejo filmes de tiroteio em busca daquela zerada de QI do final de semana, e ainda considero Schwarzenegger, Stallone e Bruce Willis meus grandes heróis do cinema (de uma época onde filmes com super-heróis eram raros). A questão é que eu sei diferenciá-los, e meu perfil se encaixa mais com os princípios de um Homem Aranha do que de um Rambo.


Wolverine, Justiceiro e Lobo são ótimos personagens das HQs, quem não se diverte com o rastro de corpos que os três deixam por onde passam? No entanto, é importante saber que na ficção tudo é válido e o que estou trazendo aqui para discussão é o fato de que certos heróis como Superman, Homem Aranha e Capitão América deveriam continuar simbolizando aquilo para o qual eles foram criados. Desenvolver um roteiro onde o Logan retalha vilões e pára para fumar um charuto é algo natural nos gibis, mas qual a necessidade de se escrever Clark Kent matando alienígenas indiscriminadamente ou de mostrar Peter Parker adotando métodos que antes o colocavam contra caras como o próprio Wolverine?


Temos ótimos personagens violentos para destrincharmos suas personalidades (ou a falta de), não acho que seja necessário transformar todos eles, mesmo os bons, em personagens ignorantes e mal encarados. A meu ver, isso só denota uma completa falta de criatividade e um desespero grande em atender demandas de mercado. Como disse George Perez, escrever boas histórias está em último plano das editoras atualmente, o que importa é o que vende, e como hoje qualquer lixo vende...


Aceito que tudo que é feito atualmente com relação a super-heróis não é mais para caras da minha idade. Até aceito que meus conceitos de vida estejam ultrapassados e obsoletos, mas não escondo o quanto atos de bravura e coragem me emocionam nos cinemas e nas HQs, e o quanto vou ao cinema na esperança de vê-los nem que sejam em uma ceninha pós-crédito. Fui ao cinema esperando ver o melhor filme do ano com o Superman, e como resposta tive um bom filme de ação e ficção científica, porém sem qualquer alma.


Mesmo na sanha de fazer bilheteria e tirar seus estúdios da lama, outros filmes de super-heróis conseguiram me atingir de forma muito mais direta no quesito emoção. A cena de Homem Aranha 2, dirigido por Sam Raimi, em que Peter dá tudo de si para impedir a tragédia com o trem está até hoje na minha lista das mais bem executadas de todos os tempos. Não há como não se emocionar com aquela sequência em que o Aranha detém o trem sozinho e depois é reverenciado pela população que reconhece nele um verdadeiro herói. 


Sem vergonha digo que vou as lágrimas.


Uma das cenas finais de Vingadores (resenhado aqui) também mostra o reconhecimento das pessoas com relação ao salvamento feito pelos heróis, e revendo o filme recentemente fiquei emocionado em perceber que houve um cuidado para que, mesmo diante de toda a galhofa do filme, os personagens não fossem descaracterizados. Em meio ao caos o Capitão América se esforça para ajudar as pessoas do ataque chitauri, não porque ele quer, mas sim porque ele sabe que deve fazer aquilo. Para mim isso é ser um herói, qualquer deturpação nesse conceito é desespero para se lucrar e não transmitir nenhuma mensagem positiva.


Talvez eu deva parar de ler HQs uma vez que elas já não apresentam inovações em seus roteiros há muito tempo, talvez eu vá ao cinema apenas para reclamar que os personagens dos quais eu gosto não são mais os mesmos, mas duvido que do dia pra noite os manda-chuvas de Warner e Disney se conscientizem que os personagens devem ser incorruptíveis, por pior que esteja a sociedade no qual suas características se espelham e se baseiam, e que num passe de mágica eles decidam respeitar o que os fãs mais fieis pensam sobre os novos rumos tomados. Sei que o que importa é o dinheiro na atual conjuntura dos fatos, e que ideais e princípios são coisas de gente velha e gagá. Sei também que não adianta xingar muito no Twitter ou fazer protestos na Avenida Paulista que nada vai mudar, mas isso não vai fazer com que eu xingue menos.

Posso estar "ficando velho demais para essa merda", parafraseando Roger Murtaugh, mas pelo menos mantenho meus conceitos de vida intactos e incorruptíveis.

Ps.: Recentemente o escritor Grant Morrison veio a público para falar sobre a polêmica dos "heróis matadores". Abaixo o texto na íntegra:



"Não quero soar como um saudosista da Era de Prata [das HQs americanas] mas tenho notado muita gente dizendo que Batman deveria matar o Coringa e que o Superman deveria matar também, tomar para si as decisões morais difíceis que todos nós temos que fazer diariamente.
Não sei você, mas a última decisão moral que tomei não envolvia matar ninguém. Na verdade, quanto mais você pensa sobre isso - a não ser que você seja parte das Forças Armadas - matar é ilegal e imoral. Por que nós desejaríamos que os nossos super-heróis fizessem isso?"

NAMASTE! 

17 comentários:

  1. Primeiramente eu falo uma coisa,meu personagem predileto é o Justiceiro mas isso não significa que eu quero que todos os outros sejam iguais a ele,por mais que eu goste do otto-aranha(não me julgue,é loucura)Peter é o definitivo,outro exemplo é Kal-el
    não sou fã dele mas se ele dever mudar o jeito de escoteirão NÃO!Isso é basicamente mudar a essencia do personagem.

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  2. Ótimo texto. Como não dou a mínima pras redes sociais, achei que eu era a única pessoa da Terra a não engolir o fato de que o Superman matou o Zod no filme. Cagada de Znyder. Ele não deve ter lido a história do Byrne, aquela em que o Superman executa os três kryptonianos e depois se refugia no espaço, de tanta culpa.

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  3. Essa matéria contou uma grande realidade dos quadrinhos. Tudo o que foi falado é verdade. Apoio concepções assim e devo admitir que parei de consumir quadrinhos por causa de tudo isso que foi colocado aqui. Sinto falta dos anos 70 e 80. Nessa época sim, produziam quadrinhos de qualidade. Concordo com George Perez em tudo. Hoje, muitos quadrinhos são feitos para ganharem dinheiro mesmo.

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  4. O que acontece hoje é uma retomada disso que começou nos anos 80.

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  5. E a questão de não matar é bem simples, é uma forma de manter os vilões sempre na ativa, afinal quantas pessoas sabem quais são ao todos os vilões do Justiceiro??

    Nos filmes fica ai pior, já que nunca vamos ver algo como os Thunderbolts e os Mestres do Terror, e qualquer evolução desses personagens dentro do universo.

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  6. O que é Batman Ano Um senão um retorno ao Batman de Bob Kane e Bill Finger (claro que modernizado)?

    Os heróis quando foram criados não tinham essas amarras morais, eram vigilantes que faziam o que achavam que deveriam fazer. Externavam o desejo de justiça de seus autores e leitores, geralmente crianças que tinham uma visão simplista do mundo. Em Action Comics# 2 o Superman resolve uma guerra colocando dois generais frente a frente para se estapearem.

    Foi com o passar do tempo que as críticas à má influência dos quadrinhos na juventude que fez com que os heróis passassem a ser símbolos de moral e ética. E não só pelas críticas mas também por uma tendência de infantilizar as histórias pois era isso que vendia mais. O Capitão Marvel se tornou o gibi mais vendido de sua época e trazia uma estética infantilizada e mais cômica, algo que foi seguido pelos outros.

    Nos anos 60 a Marvel começou a questionar isso com seus heróis não tão infalíveis assim. E essa tendência ganhou mais força nos anos 70 sendo extrapolada nos anos 80 e 90 com seus anti-heróis.

    O que acontece hoje é sequência natural disso. É engraçado que historicamente os heróis foram o símbolo da moral por um curto período, basicamente entre a década de 40 e 60. De lá pra cá, tudo foi marcado por uma desconstrução do gênero e um retorno às suas raízes, mas tem gente que ainda acha que é coisa nova.

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  7. Antes o Superman matava o Ultra-Humanite e dizia que ele teve o que mereceu. O Batman ia deter um atirador em uma janela e já chegava quebrando o pescoço.

    Hoje, Batman e Superman continuam sendo heróis que não matam. Quando cometem um ato questionável, não se sentem bem com isso. Ou seja, não são mais os heróis bonzinhos dos anos 50, mas estão longe de serem justiceiros. Até para matar o Apocalypse o Superman se questionou recentemente.

    O problema é que hoje em dia tudo que acontece não é contextualizado pelo público. Só ver o que aconteceu em Man of Steel, onde o Superman mata o Zod em uma situação que estava sem saída, mas demonstra que aquilo o afetou. Se fosse em uma história do Siegel em 38, o Super mataria o Zod e saíria triunfante. Não havia questionamento sobre como um herói deveria agir na época.

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