Sim, eu sou um verme.
Há dois anos mais ou menos, ao fim da saga One More Day (Um dia a mais aqui no Brasil) nas publicações nacionais do Homem Aranha, eu decidi por mim mesmo que eu não voltaria a colecionar HQs do herói aracnídeo, contrariado com os eventos que culminaram no maior reboot que já aconteceu nas histórias em quadrinhos: o fim do casamento de Peter e Mary Jane.
Não, eles não se divorciaram e nem a MJ largou o Peter pra viver com outro, o buraco é mais embaixo e envolve até mesmo pactos demoníacos.
Como diria Jack, o estripador, vamos por partes (tá, piada velha, eu sei).
Ao longo dos últimos anos o personagem Homem Aranha passou por poucas e boas nas mãos dos roteiristas de suas HQs, e enredos pra lá de absurdos surgiram sob a batuta do editor-chefe da Marvel, Joe Quesada. Quesada assumiu o cargo em meados de 2000, ano em que a Marvel começava a se reabilitar de sua quase falência ocorrida no finalzinho dos anos 90, e o gorducho conseguiu com grande esforço ajudar nessa reabilitação, fazendo com que a editora voltasse a seu status quo anterior.
Entre outras coisas, Quesada criou os selos Marvel Knights e MAX, com histórias de conteúdo adulto, e estimulou a criação do universo Ultimate, mais voltado para o público adolescente.
As vendas voltaram a aumentar, e a Marvel se manteve no topo ultrapassando a Distinta Concorrente e seus principais títulos por um longo período. O Universo Ultimate vinha no embalo dos filmes do Homem Aranha e dos X-Men que haviam renovado o jeito de se fazer filme com personagens de Quadrinhos no cinema, e a renovação do público exigia também novas histórias. Sob o comando de Brian Michael Bendis nos roteiros e Mark Bagley nos desenhos, o Homem Aranha Ultimate ganhou fácil a aceitação do público jovem que passou a se identificar com o herói adolescente. Nesse universo a vida de Peter Parker e seu alter-ego é recontada desde o início com alterações básicas na história original como a teia orgânica (como nos filmes), as características físicas de personagens e a origem de seus vilões. Peter é o mesmo adolescente do começo da carreira do universo tradicional (chamado de Universo 616), mas a forma como suas histórias acontecem é outra completamente. Quesada começou a ter fixação em trazer o Aranha para mais próximo do público jovem, o que desde os primórdios era a ideia de Stan Lee ao criar o personagem, mas infelizmente ele não se conteve só no universo Ultimate e avançou com sede para o 616, começando a fazer (ou permitir) alterações que rascunhavam o que ele queria de verdade: tornar o herói solteiro outra vez.
Foram tantos absurdos escritos para o personagem durante os últimos anos que eu ficaria escrevendo aqui por horas. Só relembrando por cima as enrascadas em que meteram o Escalador de Paredes, posso citar a suposta morte de Mary Jane em um acidente aéreo, a ridícula história dos poderes totêmicos do Aranha (onde ele descobria que na verdade ele era um descendente de uma casta de Homens-Aranhas e que a aranha irradiada não o havia picado por acidente), a transformação do personagem numa aranha de verdade, nos novos poderes (ferrões saindo pelos braços, controle sobre insetos...), a Saga o Outro, onde Peter morre após ser agredido ferozmente por Morlun (e perde um olho!) apenas para renascer mais tarde de dentro de seu próprio corpo e se reconstruindo dentro de um casulo (!!), Os filhos de Gwen Stacy com Norman Osborn (!!), o surgimento do Duende Cinzento (um dos filhos de Gwen), etc., etc.. É muita história ruim para um personagem só, e esse foi só o começo da ladeira em que o pobre Aranha começou a descer.
Após a infeliz saga O Outro, lançada até com bastante euforia pela Marvel, veio a Guerra Civil escrita por Mark Millar e foi aí que o caldo entornou de vez para o Amigão da Vizinhança.
No enredo, uma lei de registro de super-heróis apoiada pelo governo americano e pelo Homem de Ferro (após um acidente na cidade de Stamford que matou milhares de moradores, provocado pelos Novos Guerreiros e o vilão Nitro) ameaçava entrar em vigor, e Peter Parker se viu envolvido no conflito por estar morando com os Vingadores sob a tutela de Tony Stark. O alter ego do Homem de Ferro vinha ajudando Peter a se recuperar desde sua "aparente morte", e influenciado pelo milionário, o herói acabou ficando a seu lado na Guerra, contra o Capitão América e sua equipe.
A lei de registro exigia que todo super-herói em solo americano revelasse sua identidade para o governo, impedindo assim que seus atos como vigilantes ficassem impunes como havia acontecido em Stamford. Persuadido por Stark e com o apoio de Mary Jane e da tia May, o Aranha tomou uma das atitudes mais absurdas de toda sua vida, revelando sua identidade secreta para o mundo em rede nacional, em apoio à lei de registro. A partir de então, ao contrário do que imaginava, Peter começou a ver sua vida transformada num inferno e tão logo ele se arrependeu do lado que escolhera na Guerra Civil, Stark o abandonou à própria sorte, deixando-o desesperado tendo que manter a família a salvo enquanto era caçado por todos os lados por seus inimigos e com sua identidade secreta exposta. Como o Capitão América o havia alertado, Peter havia dado o CEP da Mary Jane para todos seus inimigos. Troféu “parabéns campeão” para o Cabeça de Teia!
Perdido como jamais estivera, Peter sofreu o golpe fatal quando num atentado executado pelo Rei do Crime destinado a ele, a tia May sofreu as consequências, sendo baleada no Hotel em que estavam refugiados. Sem dinheiro para colocar a tia num hospital particular e vendo-a definhar a cada dia, Peter apelou para todos seus conhecidos, desde o Dr. Estranho a Reed Richards, mas nenhum deles aparentemente (e curiosamente) podia fazer nada por ela. O Aranha chegou a receber a visita até de Deus (?) numa história que contava a importância dos dons que Peter havia recebido e a quantidade de pessoas que ele havia ajudado por causa deles, mas foi “o outro lado” que ele ouviu mais, dando as lembranças de seu casamento e todo o amor que o unia à Mary Jane à Mefisto, o Demônio-mor da mitologia Marvel, em troca da saúde de sua tia moribunda. E assim deu-se a saga Um dia a mais que encerrou mais de 20 anos de história do herói aracnídeo, voltando-o ao status de solteiro pobretão morando com a tia.
No processo, Mefisto apagou também todas as lembranças do mundo do dia em que Peter revelou ser o Homem Aranha, e com o fim do casamento do herói com sua amada, outros fatos se alteraram em sua história, como por exemplo a “não morte” de Harry Osborn e a “nunca existência” das teias orgânicas criadas na época em que ele se tornou uma Aranha-Humana. Até hoje dá um frio na barriga lembrar que tudo isso aconteceu mesmo, mas qual a explicação para todas essas mudanças bruscas na cronologia do Homem Aranha? Quais os reais motivos que fizeram Joe Quesada, o editor-chefe da Marvel e o escritor J. Michael Straczynski jogarem tanta lama no passado do personagem e mudar toda sua história?
A seguir, trechos da entrevista principal concedida pelo gorducho ao Comic Book Resources e que foi republicada pelo Omelete:
O porquê de Um dia a mais:
"Se o Aranha envelhecer e morrer com nossos leitores, é isso - ele estará acabado, nunca será o ídolo de futuros fãs. Se mantivermos o Aranha rejuvenescido e interessante para os fãs no horizonte, conseguimos não só isso, mas também o mantemos legal para quem acompanha suas aventuras há anos. Todo mundo vai ficar feliz com a decisão? Não, é claro que não - mas é como uma corrida de cavalos. No fim das contas, meu trabalho é manter estes personagens frescos e prontos para todo fã que aparecer".
Sobre o fato de Straczynski ter tentado modificar a história da forma como Quesada queria:
“O que infelizmente aconteceu com os roteiros originais de Joe [Straczynski] é que não recebemos a história na metodologia e com a solução que esperávamos. O problema é que tínhamos quatro escritores e artistas já trabalhando em "Brand New Day" [a nova fase do Aranha] que estavam esperando o fim de "One More Day" da maneira que havíamos combinado. Os roteiros originais de Joe, especialmente o quarto, não faziam isso".
Na sequencia da entrevista, Quesada explica que a forma como se apagaria o casamento de Peter e Mary Jane havia sido definida dois anos antes em um encontro de escritores e editores. Straczynski avisou que deixaria a série principal do herói e pediu para escrever esta última história. Ao enviar o roteiro, porém, mudou de ideia e criou uma história onde Mefisto muda a vida do Aranha em um ponto determinado das histórias do início dos anos 70 - Peter convence Harry Osborn a tratar seu problema com as drogas, Harry e MJ continuam juntos, Gwen Stacy não morre e o casamento nunca
acontece. Quesada pediu a Straczynski para refazer o roteiro, como combinado, mas não gostou do resultado. A última edição de "One More Day" acabou sendo reescrita por Quesada com os editores Axel Alonso e Tom Brevoort, e tudo que aconteceu após esse evento foi idealizado pelo próprio editor-chefe e seus escritores.
Em carta ao site Newsarama, Straczynski disse que contestava a ideia da Marvel (e do Quesada) de que tudo pode ser resolvido com "mágica", como Mefisto apagar as memórias de todo o universo sobre o casamento de Peter e Mary Jane.
"É uma solução malfeita. Viola todas as regras de ficção e fantasia que eu e todo escritor de sci-fi e fantasia sabemos que não pode ser violada. É elementar."
O escritor ainda queria que "One More Day" tivesse acontecido antes, assim que Tia May levou um tiro, mas foi impedido pelos editores. "E sim, eu queria apagar os gêmeos Gwen [os filhos da loirinha com Norman Osborn] da continuidade, o que achei que poderia fazer quando saísse da série. Não me deixaram fazer isso, e, sim, fiquei puto. Fiquei com a culpa por algo do
que queria me livrar e por um lapso que não foi meu", completa Straczynski, que diz respeitar a posição de Quesada como editor, apesar de não concordar com as decisões.
Bom, não foram somente os fãs mais antigos do personagem que não aprovaram as ideias de Joe Quesada para resolver o casamento do Homem Aranha que tanto o incomodava. O próprio Straczynski acabou cornetando o chefe achando a estratégia de apagar a vida do personagem com um passe de mágica das mais covardes. Hoje, quase dois anos depois do baque principal causado pelo reboot, as histórias do Aranha se encontram numa tranquilidade cronológica, embora a saga One Moment in Time (ainda inédita no Brasil) venha colocar mais lenha na fogueira aracnídea voltando ao assunto que dividiu a opinião dos fãs: o que na verdade aconteceu no dia do casamento de Peter e Mary Jane.
Provavelmente incomodado com o fato da quase totalidade dos leitores ter considerado a explicação “mágica” pra lá de inverossímil, mesmo em se tratando de uma HQ fantasiosa, Quesada tomou a responsabilidade pra si de explicar o que aconteceu no fatídico dia, e o que exatamente fez MJ mudar de ideia quanto a subir ao altar com Peter. Embora isso cause um rebuliço nas vendas da revista do herói, duvido que a história explique algo de grande relevância, e duvido mais ainda que a saga acabe dando um novo restart (e não estou falando da banda EMO!) na franquia Homem Aranha, voltando tudo como era antes do pacto com Mefisto. No máximo a história deixará a consciência de Quesada leve (ele mesmo admitiu que nem dormiu quando decidiu criar One More Day), e não vai alterar nada na vida atual do personagem, o que é uma pena.
Como disse no começo do post, voltei a acompanhar as edições nacionais do Aranha há algum tempo e realmente não dá pra dizer que as histórias estão ruins. Com clima descontraído e apresentando um Homem Aranha bem engraçado, longe daquele perfil sombrio que o marcava desde a Saga do Clone, as novas aventuras do herói na chamada Brand New Day (Um Novo Dia) até são bem animadas, embora eu sinta falta daquele algo mais que a presença de MJ na vida do azarado Peter Parker trazia.
Recentemente, após uma longa estadia na Califórnia, onde esteve trabalhando como atriz, a ruiva está de volta, embora isso não signifique que ela voltará a disputar o coração do Aranha. A edição desse mês (Homem Aranha 107, publicada pela Panini) até mostra de relance alguns dos motivos que fizeram MJ desistir do casamento com Peter, insinuando as mesmas coisas que a deixavam insegura logo que ela descobriu que ele e o Homem Aranha eram a mesma pessoa lá na boa década de 80, e também época em que ela começava a considerar um namoro com ele.
Não adianta.
Quesada e seus roteiristas podem explicar o que quiserem que nada vai consertar uma das maiores besteiras que foram feitas com o Homem Aranha. O personagem crescer, evoluir não implica em perda de público. Ninguém vai gostar menos do personagem porque ele é casado, e duvido que as quedas nas vendas no limiar do século XXI aconteceram por causa disso. O próprio Quesada deixou que fossem publicadas histórias ridículas que só serviram para minar a popularidade do herói, como os filhos da Gwen (que se tornou uma vadia de repente engravidando do pior inimigo do Aranha), e depois quando viu que nada mais parecia funcionar, inventou a tal One More Day, que para nada mais serviu além de acabar com o casamento do personagem, algo que publicamente o editor não gostava.
A meu ver o personagem não precisava “involuir” voltando a ser um solteirão que mora com a tia para voltar a se produzir boas histórias com ele. Isso foi uma desculpa que Quesada usou para dar base a seu argumento de que o “personagem não pode envelhecer com seus fãs”. O tom das histórias atuais podia muito bem ser empregado da mesmíssima forma como vem sendo, mantendo o casamento do personagem.
Qual a relevância de se trazer Harry Osborn de volta? Já que virou um samba do aracnídeo louco, por que não trazer Gwen também de volta à vida? Ou o Capitão Stacy? Ou o tio Ben?
Mesmo voltando aos poucos do baque do reboot, ainda me vejo incomodado de estar lendo um material que embora seja bom, não é o que eu queria realmente ler. Tenho HQs em casa de mais de 20 anos, li histórias dos anos 60 e 70 escritas pelos criadores do personagem, e por aqueles que ajudaram a consolidar a sua carreira nesses mais de 40 anos, acompanhei o desenvolvimento do relacionamento entre Peter e MJ, li o casamento dos personagens, estive lá durante as maluquices que aprontaram com o pobre Aranha na década de 90, abandonei o personagem no início da década de 2000 e acompanhei o auge e o fracasso da série cinematográfica dos filmes de Sam Raimi. É muita coisa para vir um editor incomodado com as vendas e num passe de mágica ele conseguir apagar mais da metade do que já li sobre o personagem até hoje sob um pretexto de que ele “não pode envelhecer como seus fãs”. Em nome dos novos leitores (que hoje em dia preferem mais mangás do que HQs) Quesada fechou a porta na cara dos antigos e passou por
cima de muita coisa, deixando um legado pra lá de obscuro na sua passagem pela Marvel, que pelo visto ainda será longa.
Como fã me sinto até hoje ultrajado por essa decisão editorial e pela forma autoritária como ela foi feita, mas o mundo comercial não dá espaço para sentimentalismos. Só me resta ler as histórias antigas que gosto sabendo que estou ultrapassado, e que as novas histórias regrediram o personagem de forma patética, sem uma grande explicação que fizesse jus ao que foi proposto.
Embora elas sejam pequenas perto do vão cronológico que foi criado após o pacto com Mefisto, existem coisas boas nesse “passe de mágica”, como o delete nos poderes totêmicos, nos filhos da Gwen (pelo menos eu acho que isso foi apagado), e na porcaria da saga o Outro. Até segunda ordem, pelo que entendi, a Saga do Clone foi mantida, embora com breves alterações como Ben Reilly (o clone do Aranha) ter sido um dos responsáveis pela separação de Peter e MJ, sabe-se lá Deus como.
O mais engraçado que a hipocrisia americana é tão profunda que eles são veementemente contra alguns conceitos como divórcio (o que o próprio Quesada condenou como uma das formas de Peter se separar de MJ), filhos fora do casamento (motivo pelo qual ele fez com que Straczynski escrevesse que os filhos de Gwen eram do Osborn e não de Peter) e exibição demasiada de doutrinas contrárias às deles (como mostrar suásticas e cruzes de cabeça pra baixo), mas em nenhum momento Quesada pensou que Mefisto é um demônio e que Peter fizera um pacto com ele pela saúde de sua tia.
Ele fez um pacto com o Demônio e deu seu casamento em troca. Para quem se comportou a todo momento como um puritano e defensor da moral e dos bons costumes (mesmo em se tratando de quadrinhos e histórias fantasiosas) o gorducho deu uma bela de uma escorregada com seu One more Day. Eu não sei, mas a meu ver, um divórcio seria bem menos agressivo do que se aliar ao Demo para conseguir algo de seu desejo. Seria o Homem Aranha agora um agente de Satã?
Como diria o próprio Quesada “It's magic, we don't have to explain it”.
O post termina por aqui, mas as confusões causadas por One More Day ainda renderão novos posts futuramente. Aguardo as edições nacionais de One Moment in time para comentar também. Segura a gastrite para aguentar tanto nervoso!
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