O cinema costuma refletir o que acontece na vida real e como não podia deixar de ser, esse ano o Oscar vai premiar ótimas obras de ficção baseadas na realidade, entre elas, três produções que falam de racismo e preconceito étnico: Judas e o Messias Negro, Os 7 de Chicago e Dois Estranhos.
Sigam-me os bons!
Fundado em 1966 pelos estudantes negros de Oakland (Califórnia) Huey Newton e Bobby Seale, o grupo dos Panteras Negras foi criado para combater a violência policial praticada sobretudo contra os afro-americanos, ação que na época, estava se intensificando devido a luta pelos direitos civis. Vendo seus pares recebendo um tratamento cada vez mais agressivo na sociedade à medida que tentavam reivindicar por melhores condições humanitárias, Newton e Seale decidiram igualar suas forças com a Polícia, tornando os Panteras Negras, à princípio, um grupo armado que monitorava as ações truculentas contra negros, coibindo também qualquer manifestação de racismo.
Nos primeiros anos da fundação dos Black Panther, o grupo
não só conseguiu mais adeptos de seus ideais na própria Califórnia, como também
acabou ganhando projeção nacional, espalhando células por todo os Estados
Unidos. As ações radicais — incluindo as armadas — começaram a se tornar mais sociais
e o grupo logo transformou-se num partido, passando a usar sua influência para
construir clínicas médicas populares — que atendiam a comunidade
pobre, negra e latina —, escolas e até organizando mutirões para entrega de
alimentos. Entre suas muitas ideologias, os Panteras Negras pregavam a
sociedade autogestionária — onde os negros governariam a si mesmos —, crítica
aberta ao sistema capitalista, liberdade para determinar o destino da
comunidade, moradia, educação decente e isenção do serviço militar para homens
negros.
A expansão das células do partido pelo país claramente
passou a incomodar o governo da época — liderado na Casa Branca por J. Edgar
Hoover — que via na sua influência um perigo para a sociedade branca
predominante. Apoiados por grande parte da população que via na segregação
racial o status quo que deveria ser seguido em seu país, os governantes usaram
o FBI para implodir a organização dos Panteras Negras, implantando agentes
infiltrados em suas células e enfraquecendo o grupo ano após ano. Dois dos
casos mais emblemáticos envolvendo membros do partido foram o de Bobby Seale
durante o julgamento dos “7 de Chicago” em que o cofundador dos Panteras Negras
foi amarrado e amordaçado perante a corte a mando do juiz responsável pelo caso
e o do jovem líder do partido em Illinois Fred Hampton que foi
assassinado à queima-roupa pela Polícia em sua casa, diante da esposa grávida
de oito meses. Ambas as histórias reais estão sendo retratadas em filmes distintos
e concorrendo ao Oscar de 2021.
JUDAS E O MESSIAS NEGRO
Dirigido pelo norte-americano Shaka King de 41 anos, Judas e
o Messias Negro conta sem grandes filtros a dramática ascensão e queda do líder
carismático Fred Hampton, que aos 21 anos veio a se tornar um dos mais
importantes e influentes líderes do partido dos Panteras Negras. Interpretado
na tela por Daniel Kaluuya (do excelente Corra!), Hampton era um orador talentoso
que baseava seus discursos, sempre bastante inflamados frente a sua comunidade,
em nomes como o de Malcolm X e do pastor Martin Luther King, ambos assassinados
por suas crenças ainda durante a década de 60. Como o “Presidente” do partido
em Illinois, Hampton usou de sua persuasão para abraçar outros grupos em pró da
sua causa — seguindo a ideologia já comentada dos Panteras — como os
porto-riquenhos e os sulistas, que tal qual os negros, eram marginalizados e
condenados à extrema pobreza no estado americano.
Em paralelo à ascensão de Hampton junto aos Panteras Negras,
o filme acompanha também a vida de William O’Neal (LaKeith Stanfield), um
ladrão de carros trapaceiro que acaba sendo cooptado por um agente do FBI chamado
Mitchell (vivido pelo comumente conhecido “Matt Damon genérico” Jesse Plemons) para
trabalhar infiltrado junto à célula de Hampton. Se vendo sem saída e aceitando
trabalhar para o governo em troca de um salvo-conduto, “Wild Bill” acaba
entrando para os Panteras Negras, chegando a se tornar o chefe de segurança do
partido enquanto espiona secretamente as ações de Hampton.
Apesar de não impressionar tanto em seu início lento ou
ousar com tomadas de câmaras mirabolantes — e nesse caso desnecessárias — Judas
e o Messias Negro compõe muito bem seus personagens principais, tornando
bastante imersivas suas jornadas pessoais. É impossível não reagir
positivamente às sequências em que Hampton discursa diante de uma plateia
exultante ou que ele simplesmente convence novos adeptos à sua causa — entre
eles a célula conhecida como “The Crowns”, que eram rivais aos Panteras em
essência, mas que partilhavam de vários de seus ideais — e exatamente por isso,
o filme se coloca como um elemento importantíssimo para entendermos melhor essa
época tão conturbada da história americana e cujas consequências se estendem
até os dias atuais. De certo modo, a luta de Hampton contra o racismo perdura
até hoje, travada agora por outras pessoas.
É importante salientar que em vários momentos do filme nos é
mostrado em detalhes que, apesar das ações sociais em pró da comunidade carente
da região onde a sede do partido está instalada, os Panteras Negras consideram
o uso da força contra a Polícia para se fazer entender, mas que isso em nenhum
momento desabona o motivo pela qual eles se organizaram. O endosso pela causa
antirracista ganha ainda mais intensidade conforme mergulhamos no plano sujo do
agente Mitchell e seus superiores para destruir Fred Hampton — com o óbvio aval
do Presidente J. Edgar Hoover, em tela vivido por Martin Sheen — usando
a figura de O’Neal, e simplesmente não tem como não nos colocarmos do lado dos oprimidos. Nesse sentido, Judas e o Messias Negro presta um
excelente serviço de conscientização às causas raciais e nos faz ter empatia
não só ao que Fred Hampton representava na vida real, como também a todas as
pessoas que sofreram injúrias e acabaram pagando com suas próprias vidas acima
de tudo pela cor de sua pele.
O assassinato brutal de Fred Hampton estimulou diversos protestos na comunidade negra dos Estados Unidos ao final da década de 60 e somente muitos anos depois é que foi pago uma indenização à sua família e a dos outros membros do partido mortos durante a ação desproporcional da Polícia, que disparou quase 100 tiros na invasão à casa, contra um disparado em autodefesa. Apesar disso, não houve qualquer declaração de desculpas ou de arrependimento por parte das autoridades após a derrota nos tribunais.
É impossível não comparar Judas e o Messias Negro com outra
grande porrada visual que é Infiltrados na Klan (comentado aqui) de Spike Lee,
o vencedor de Melhor Roteiro Adaptado do Oscar 2020, já que ambos falam de
assuntos semelhantes — racismo, infiltração de agentes em grupos rivais... —,
mas apesar de ser um material mais cru de uma realidade sem floreios, o filme
de Shaka King carece de ritmo em certos momentos comparado ao de Lee, o que felizmente é compensado
pela brilhante atuação do protagonista Daniel Kaluuya, que desponta como um dos
mais importantes atores negros de Hollywood. Toda a motivação de Hampton está
entranhada na interpretação do ator e ele chega ao Oscar 2021 como um forte
candidato ao prêmio de Melhor Ator Coadjuvante, ao lado do parceiro em tela
LaKeith Stanfield.
Além de Melhor Ator Coadjuvante, a produção disputa também
Melhor Filme, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia. Se destacando como o
primeiro filme a ser produzido inteiramente por negros (entre eles Ryan
Coogler, diretor de Creed e Pantera Negra da Marvel), Judas e o Messias Negro
não concorreu ao prêmio máximo do Globo de Ouro desse ano, mas Daniel Kaluuya
foi premiado como Melhor Ator Coadjuvante na categoria.
Judas e o Messias Negro não está disponível em nenhuma plataforma de streaming no Brasil e atualmente pode ser visto apenas em alguns cinemas do país, com todas as restrições atuais por conta da pandemia de Covid-19.
NOTA: 9
OS 7 DE CHICAGO
Tanto Judas e o Messias Negro quanto Os 7 de Chicago se passam praticamente na mesma época dos anos 60 e chegam mesmo a “compartilhar” alguns personagens, visto que Bobby Seale — que é apenas mencionado em Judas — faz parte inicialmente do julgamento dos "7 de Chicago" e é orientado, na ausência de seu advogado na corte, pelo próprio Fred Hampton, nesse filme, interpretado pelo ator Kelvin Harrison Jr..
A participação de Seale (vivido por Yahya Abdul-Mateen II, o Arraia Negra de Aquaman) na produção dirigida por Aaron Sorkin é bem mais intensa, visto que é protagonizada por ele a cena absurda — e revoltante — em que o juiz tendencioso Julius Hoffman (Frank Langella), na tentativa de calá-lo por sua insistência em querer se representar sozinho diante do júri — doente, o advogado de Seale está ausente do julgamento —, manda que os seguranças batam, amarrem e amordacem o homem diante de todos, numa tentativa truculenta de “manter a ordem” no tribunal.
Assim como os outros réus do famoso caso, Seale é acusado de causar tumultos em protestos contra a
obrigatoriedade do alistamento de jovens para combater na Guerra do Vietnã e apesar de
não estar necessariamente aliado aos demais, acaba sendo julgado em paralelo, até ser absolvido de todas as acusações posteriormente. É notório no filme o desprezo que o juiz Hoffman sente pela figura de Seale e é bem claro o tratamento diferenciado que ele, por ser preto, recebe do magistrado, incluindo aí a ordem de violência física.
De maneira bem didática em forma de flashbacks e da narração
sucinta do personagem Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen, de Borat) em um show de
stand-up, Sorkin mostra toda a trajetória de cada um dos 7 membros até sua
chegada ao fatídico dia do confronto com a Polícia, durante a Convenção Nacional
Democrata de 1968 em Chicago, Illinois. Acusados de conspiração e incitação à
revolta contra a Guerra do Vietnã — em que os EUA estavam presentes desde 1964
—, Tom Hayden (Eddie Redmayne), Abbie Hoffman (o já citado Sacha Baron Cohen), Rennie
Davis (Alex Sharp), Jerry Rubin (Jeremy Strong), David Dellinger (John Carroll
Lynch), Lee Weiner (Noah Robbins) e John Froines (Daniel Flaherty) passam por
um extenuante julgamento que demora seis meses e em que a promotoria tenta de várias maneiras
comprovar a culpa deles em toda a ação que levou ao uso excessivo de força
por parte da Polícia. Representados pelo advogado William Kunstler (Mark Rylance) e
procurando comprovar sua inocência enquanto dezenas de testemunhas são ouvidas,
os 7 são interpelados pelo promotor Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt), que apesar de toda a pressão para que faça-se cumprir a lei, no filme, não acredita 100% na culpa dos rapazes.
O longa tem uma montagem dinâmica entre as cenas e a história é conduzida
sem grande barriga no miolo, fazendo com que até mesmo o espectador mais leigo
em direito penal consiga acompanhar do preâmbulo da narrativa até seu desfecho,
em tela, apoteótico. Embora conte com vários floreios que servem para uma
condução mais adequada da trama — algo bastante comum em adaptações de histórias
reais para o cinema — Os 7 de Chicago é até bastante fiel ao que aconteceu de
fato em 1968, incluindo as piadas da dupla Abbie e Jerry com o juiz Hoffman e a
leitura dos nomes dos mais de 5 mil soldados americanos mortos no Vietnã
durante o julgamento. Filmes que narram julgamentos sempre me atraíram desde a
adolescência — e Hollywood sabe bem transformar qualquer caso em
espetáculo! —, mas costumeiramente eles são chatos e arrastados, algo que não
acontece aqui.
Na festa do Oscar, além de Melhor Filme, The Trial of the
Chicago 7 concorre a Melhor Ator Coadjuvante (com Sacha Baron Cohen, que
realmente está incrível como o provocador Abbie Hoffman), Roteiro Original,
Fotografia, Montagem e Canção Original (“Hear My Voice”, interpretada pela cantora Celeste).
Assim como outros 17 títulos que disputam o Oscar esse ano,
Os 7 de Chicago está disponível na Netflix e pode ser assistido até a noite da
premiação.
NOTA: 8,5
DOIS ESTRANHOS
Dirigido por Martin Desmond Roe e escrito por Travon Free,
Dois Estranhos (no original “Two Distant Strangers”) é um daqueles curtas que possivelmente
nunca iríamos dar uma chance de assistir se por um acaso não fosse indicado ao Oscar, mas que é uma bofetada na cara de
quem acha que cinema tem que ser obrigatoriamente apenas diversão. Confesso que
não sou muito de assistir curtas-metragens e que ignorava completamente a
existência de Dois Estranhos até muito recentemente, mas agradeço muito a facilitação
que hoje os serviços de streaming como a Netflix trazem ao disponibilizar esse
tipo de material, os tornando mais acessíveis para um público como eu.
Produzido na onda de choque que foi o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e tendo como enfoque principal o racismo, Dois Estranhos narra em 32 minutos — menos que muito episódio de série — a desventura do personagem Carter James (Joey Bada$$) que após acordar no apartamento de uma namorada casual, decide seguir para sua casa tranquilamente, tendo a infelicidade de topar com o policial linha-dura vivido pelo ator Andrew Howard no caminho.
Por puro e simples preconceito racial, o homem aborda Carter de maneira intimidatória, usando de argumento o cigarro que ele está fumando, além do maço de dinheiro que ele guarda na mochila, fruto de seu trabalho como designer gráfico. Sem dar qualquer chance do rapaz se explicar, o policial entra em conflito físico com Carter o derrubando no chão e o asfixiando, de maneira muito semelhante ao que Derek Chauvin fez com George Floyd em maio de 2020 em Minneapolis. A sensação ao assistirmos a cena fictícia é tão assustadora quanto a que tivemos com o vídeo real — incluindo a mesma frase de súplica "I can't breathe!" — e após a “morte” de Carter, o personagem entra num looping temporal — como no Dia da Marmota — que o leva sempre ao mesmo desfecho violento: com ele sendo vítima fatal do policial branco.
Apesar de ser um filme curto com poucos personagens, “Two
Distant Strangers” é de uma carga emocional muito grande que nos faz enxergar
pela ótica de uma pessoa negra os preconceitos e infortúnios diários com que
eles convivem, sendo sempre vítimas de desconfiança, de olhares tortos e da
completa desumanização por parte de quem não é dito “de cor”. No curta, mesmo
tentando abordagens mais brandas e procurando evitar o confronto a cada nova chance de vida, Carter acaba
percebendo que o policial não está a fim de ser empático com a sua figura —
mesmo ele provando se tratar de uma pessoa boa cujo cão o está esperando para
ser alimentado em casa — e mesmo quando tudo aponta para um desfecho colorido e
reconfortador, a dura realidade volta a bater em nossa cara, mostrando que nem
todo mundo consegue ter um final feliz numa sociedade tão racista e
preconceituosa.
De uns tempos pra cá, eu tenho tentado estudar sobre direitos
civis e entender mais sobre o racismo estrutural que permeia o nosso meio — e
casos como o João Alberto Silveira Freitas do Carrefour nos mostram que a
realidade está bem mais próxima de nós do que imaginamos —, mas é cada dia mais
complicado tentar entender o que leva o ser humano em pleno século XXI ainda
querer que haja segregação racial ou a querer que as pessoas negras aceitem que o
seu “não gostar de negros” é a sua opinião e não estupidez pura e simples.
Enquanto os corpos de novos George Floyd e outros João Alberto vão sendo empilhados, a
sociedade continua negando a existência de um preconceito racial, inflamando
cada dia mais um discurso vazio e rasteiro para justificar a sua ignorância.
Mais do que nunca, é preciso que seja dito… Vidas Negras Importam!
Dois Estranhos disputa o Oscar de Melhor Curta-Metragem em
live-action e tem tudo para fazer história na premiação em tempos tão
necessários de obras diretas e concisas como essa. Fica nossa torcida.
NOTA: 10
P.S. – O Pantera Negra da Marvel chegou a ser chamado de “Black Leopard” em 1972 para que houvesse uma dissociação do Rei de Wakanda com o partido político homônimo do personagem e tanto Jack Kirby quanto Stan Lee, os criadores dele, sempre negaram a influência dos Panteras Negras para o desenvolvimento de T’Challa. Em tempos, a primeira menção a um grupo denominado “Panteras Negras” surgiu nos EUA em 1965, mas o grupo criado por Huey Newton e Bobby Seale só surgiu um ano depois, na mesma época em que o Pantera Negra da Marvel fez sua estreia nas HQs do Quarteto Fantástico.
P.S. 2 - A cena em que o cachorro do personagem Carter James de Dois Estranhos é focalizado esperando ele enquanto seu dono é baleado pelo policial filho da puta deu um gatilho foda! Ainda estou de luto pelo meu amigo Peter e cada referência canina na ficção me causa um turbilhão de lágrimas!
Fontes:
Para entender os Panteras Negras
O Pantera Negra da Marvel e seu contexto político
O Caso João Alberto Silveira Freitas
NAMASTE!